Texto escrito por Adriana Maamari (*) e originalmente
publicado na edição de Maio (2014) da Revista de História da Biblioteca Nacional.
O
que há em comum nas obras de autores diversos durante um século inteiro a ponto
de justificar uma única denominação para aquele longo percurso intelectual? No
século XVIII, esta questão pode ser respondida com o auxílio da metáfora que o
batizou: as “Luzes”.
A
crença comum dos autores daquele período era a possibilidade de empreender uma
passagem da obscuridade à luz, ou das trevas da ignorância à sabedoria. Para
isso, era preciso definir um método que realizasse tal proeza. Um método
priorizando a razão e a experiência, e não mais as verdades reveladas nas
sagradas escrituras e propagadas por autoridades religiosas.
Mas
a concordância terminava aí. Os pensadores da época nunca chegaram a uma
doutrina comum, capaz de abarcar todas as outras em seu interior. Defendiam
diferentes concepções filosófico-políticas. Em resumo, não houve uma unidade de
pensamento no século das Luzes, mas sim muitas vozes dissonantes. Por isso é
que o Iluminismo não pode ser qualificado como uma doutrina ou unidade teórica.
Cartas
persas (1721)
e Espírito das leis (1748) foram as obras de Montesquieu que
deram início ao Iluminismo. A primeira é redigida a partir de dois
protagonistas que vêm de longe, de um contexto não europeu e, portanto,
estranho aos valores, aos costumes e às instituições do Velho Mundo. Esta é a
maneira que o autor encontra para criticar o seu tempo e apresentar a sua
concepção de um mundo melhor. Escrever na forma de romance era característica
de muitos filósofos daquele século, inspirados no que Montesquieu havia
inaugurado. É uma maneira de tornar a leitura da filosofia leve, prazerosa e
acessível. Ela penetra nas consciências sem que o leitor perceba que está se
deparando com filosofia e com as questões áridas que tradicionalmente ela se
propõe a tratar. O filósofo autor de romances tem, portanto, a esperança de
mudar opiniões, atuando pedagogicamente junto ao leitor e transformando o mundo
ao seu redor. Tornar o mundo melhor é, por sinal, outra ambição comum aos
pensadores iluministas.
Montesquieu
é partidário de uma concepção de República muito próxima do modelo dos romanos,
diferente do que entendemos hoje deste conceito. Sua concepção
filosófico-política apresenta a convicção na forma institucional de se
governar, com divisão de poderes (Legislativo, Judiciário e Executivo) e
respeito às leis instituídas ou à Constituição do Estado. Mas a virtude
política que sustenta é semelhante àquela que encontramos nos antigos, como
Sócrates, e inclui a noção de sacrifício, abnegação e autocontenção. A vida
política ou republicana, para este pensador, depende da capacidade daqueles que
desempenham o poder político de terem a virtude necessária para tanto. Do
contrário, teremos um mau governo. Montesquieu também era um filósofo deísta,
ou seja, mantinha a crença em Deus.
Voltaire
(1694-1778) é também um deísta, admirador da seita religiosa Quaker, que tem
origem na Inglaterra e se propaga nos Estados Unidos. Ao escrever
principalmente na forma de panfletos e de contos, pretende alcançar a opinião
pública em geral, mudá-la, enfim, transformar o mundo. E ele de fato se tornou
um filósofo bastante influente e popular, interferindo nos acontecimentos de
sua época. A concepção filosófico-política de Voltaire baseia-se no despotismo
esclarecido, em que há a confiança num monarca que segue a orientação da razão
em suas tomadas de decisão e maneira de governar.
O
despotismo esclarecido também norteia a filosofia de Denis Diderot (1713-1784).
A diferença é que este pensador era materialista e ateu. Escreveu romances,
alguns deles de literatura libertina. Sua principal obra foi um grande projeto
editorial, desenvolvido em parceria com D’Alembert (1717-1783), ao qual se
dedicou por muitos anos e que o levou à prisão. Trata-se da Enciclopédia,
uma obra inacabada, cujos verbetes foram escritos por vários autores e que se
transformou no principal símbolo do pensamento do século XVIII. Na Enciclopédia, o
espírito sistemático, o uso da razão e a dúvida permanentemente posta em ação
constituem o método para alcançar as verdades comprovadas e demonstráveis. Ao
contrário das filosofias do século XVII, que são doutrinas ou grandes sistemas
acabados e perfeitos, as filosofias do século XVIII seguem o caminho da
investigação constante. São filosofias capazes de sustentar verdades pontuais
sobre este ou aquele assunto, mas não têm a pretensão de tratar de todos os
domínios já percorridos pelo espírito humano.
No
interior da própria Enciclopédia é possível verificar as
diferenças, muitas vezes profundas, que marcam os autores do período. Em suas
contribuições pontuais, cada qual apresenta distintos posicionamentos sobre um
mesmo assunto. Um importante exemplo desta divergência entre os autores está no
verbete “Genebra”, redigido por D’Alembert. Nele, o autor elogia o teatro
parisiense e a trupe de comediantes franceses. Ao fazer isso, critica a
república de Genebra por ter proibido a entrada de atores franceses e a
exibição do teatro parisiense na cidade. Rousseau, em resposta, escreve “Carta
a d’Alembert”, opondo-se a este filósofo e ao elogio que faz ao teatro
parisiense. Rousseau defende a posição do governo genebrino de censurar este
gênero de espetáculo, argumentando que a exibição que há nele de vícios e
costumes corrompidos, presentes nas grandes cidades como Paris, a um povo
virtuoso e de bons costumes como o genebrino poderia levá-lo à degeneração e à
decadência moral, estando assim correta a censura que lhe havia sido imposta.
O
suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um dos mais ilustres representantes do
período – talvez o maior deles – é ainda o filósofo que mais demarca as
diferenças do seu pensamento em relação aos demais. Enquanto Voltaire e Diderot
confiam na razão como a faculdade humana que, posta em ação, conduz
necessariamente ao progresso, ao bem-estar geral e à felicidade entre os homens,
para Rousseau ocorre o contrário. A razão, segundo ele, leva os homens a se
distanciarem da natureza e a se corromperem, degenerando-se, inserindo-se no
vício e caminhando para a infelicidade. Quanto mais o homem se aperfeiçoa com
base na razão, mais ele decai e degenera. Com isso, Rousseau é quase uma
antítese do seu século, se quisermos insistir em enquadrá-lo numa definição.
Do
ponto de vista filosófico-político, Rousseau também se distancia de todos os
outros, pois prefere o governo republicano baseado na vontade geral dos
cidadãos. Não se trata propriamente da democracia, mas é algo que se aproxima
bastante desse ideário, pois desloca a soberania, que era até então atributo do
governante, para o povo, ou seja, os cidadãos que manifestam juntos a vontade
geral.
Considerado
o último autor do período, Condorcet (1743-1794) produziu uma síntese do legado
deixado pelos pensadores anteriores e de seu tempo, como Voltaire e Rousseau.
Seu pensamento expressa a confiança na razão como meio de progresso, bem-estar
geral e felicidade humana, mas reconhece que nem sempre a história conduz a
esse quadro. Há momentos em que a humanidade mergulha em espessas trevas e a
razão é impedida de ser exercida. Para Condorcet, a forma de governo mais capaz
de dificultar a humanidade de cair novamente na obscuridade e na ignorância é a
república, sendo o melhor regime político a democracia representativa. Ele vive
a Revolução Francesa e é inclusive o responsável pela concepção do modelo de
participação baseado no voto universal – defendido como o meio que permite o
acesso de todos à participação política.
Esta
imagem do Iluminismo feita de filosofias discordantes se reflete na definição
do filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945): o século XVIII leva a filosofia
para todos os lugares, sem pedir licença e sem esperar para ser aceita. A
filosofia invade tudo e populariza-se. A imagem aqui é a de um rio que enche,
transborda e, com a sua força, quebra todos os diques. A filosofia do XVIII
rompe as barreiras do preconceito, da ignorância e avança. É a mesma impressão
que Kant nos lança sob o lema ou a palavra de ordem “Sapere aude!”– “Ousai
saber!”.
(*)
Adriana Maamari é
professora da Universidade Federal de São Carlos e autora da tese O
republicanismo democrático de Thomas Paine (USP, 2008).
Saiba
mais – Bibliografia
CASSIRER,
Ernst. Filosofia do Iluminismo. Campinas: EdUnicamp, 1997.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. “Carta a d´Alembert”. Campinas: EdUnicamp, 1993.
TORRES
FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaio sobre Filosofia Ilustrada. São Paulo:
Iluminuras, 2004.