O
filme Nós que aqui estamos por Vós esperamos (1999), de Marcelo
Masagão, é excelente para se pensar sobre o Século XX. A obra é resultado de
uma edição/montagem de várias sequências de imagens de arquivo – a maioria delas
em preto e branco – acompanhadas por letreiros que contam as histórias de
diversos personagens. Junto com as imagens e os letreiros, temos apenas as
músicas que constituem a trilha sonora. Não há a voz de um narrador no filme.
Logo
no início, letreiros anunciam que o filme apresentará uma “Memória do breve
século XX” por meio de “Pequenas histórias/Grandes personagens” e “Pequenos
personagens/Grandes histórias”. Com esta proposta, o filme apresenta imagens
que remetem às rápidas transformações que ocorreram em várias áreas ao longo do
século passado: a industrialização, o desenvolvimento dos meios de transporte e
de comunicação e as novidades nos campos da pintura (Picasso), da psicanálise
(Freud), da política (Revolução Russa) e da física (Einstein). No balanço feito
por Masagão, todas essas transformações aconteceram de maneira muito rápida, o
que nos remete ao tema da aceleração da História durante o Século XX. Como diz
um dos próprios letreiros do filme, de um dia para o outro a cidade deixou de
cheirar a cavalo. Mais do que qualquer outra época anterior, o século passado
foi marcado por uma certa concepção de "progresso": o homem parecia cada vez mais
apto a superar todos os seus limites.
Todavia,
Nós
que aqui estamos por Vós esperamos não faz uma apologia dessa ideia de
progresso. Muito pelo contrário, o filme explora as contradições da contemporaneidade,
denunciando os limites do ser humano. O alfaiate que tenta voar ao saltar da
torre Eiffel, em Paris, acaba se arrebentando no chão. O ônibus espacial
Challenger explode no céu, em 1986. Em tais imagens, Marcelo Masagão nos
recorda que, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, o homem continua
sendo um ser limitado.
Outros
momentos do documentário nos remetem ao mundo do trabalho no contexto do sistema
capitalista. Na indústria automobilística, temos a inovação da linha de
montagem. O Ford T é fabricado em série e em um ritmo cada vez mais ágil. É a
produção que se acelera. O trabalhador é explorado com uma pesada jornada de
trabalho e baixo salário. Mesmo tendo ajudado a fabricar vários carros ao longo
da vida, o trabalhador nunca foi dono de um. O mundo do trabalho é o mundo da
exploração: centenas de homens se aglomeram no formigueiro humano de Serra
Pelada, no Brasil, em busca de ouro, trabalhando em condições degradantes. O
mundo do trabalho não está dissociado do universo da política: o soviético que
foi eleito operário padrão por cinco anos consecutivos, apaixonou-se por uma
turista italiana, discordou do partido e acabou morrendo na Sibéria.
No
campo cultural, o filme aborda o tema da internacionalização da cultura. A
operária japonesa que fabrica aparelhos de TV é fã de Elvis Presley. O
boliviano pobre que nunca assistiu a um programa televisivo gosta de Coca-Cola.
Temos no documentário também uma reflexão sobre as mudanças no padrão de
consumo durante o Século XX: o consumismo se revela na compra desenfreada de
objetos como o rádio, a TV, o carro e os eletrodomésticos. Os novos hábitos
levam ao vício em aspirina. Como se não bastasse, também temos referências ao
universo do cinema (Fred Astaire), ao mundo do futebol (Mané Garrincha) e ao
cenário da música (o festival de Woodstock). Também o campo das religiões é
objeto de interesse de Marcelo Masagão. O filme apresenta cenas de
manifestações religiosas, com fiéis de diversos credos, e parece desconfiar de
tais religiões: mesmo a crença em Deus é questionada ao fim do documentário, quando Deus parece estar distante e alheio às tragédias do Século XX.
E o século passado é visto no filme como uma sucessão de várias
tragédias. A crise econômica iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York, em
1929, provoca fome e desemprego. Um engenheiro passa a vender maçãs. Durante a
Guerra Fria, a construção do Muro de Berlim é um acontecimento emblemático, que
demonstra a separação entre os homens. Na China Comunista, a Revolução Cultural
significa a morte de várias pessoas. E temos as guerras. Quatro gerações de
homens de uma mesma família participaram, cada uma delas, de algum conflito
ocorrido no Século XX: as duas Guerras Mundiais, a Guerra do Vietnã e a Guerra
do Golfo. Um casal alemão é obrigado a se separar quando eclode a Primeira
Guerra Mundial: ele (Hans) vai para a frente de batalha atirar bombas, enquanto
ela (Anna) vai trabalhar em uma fábrica de bombas. Um homem sofre com o “Choque
de guerra” e treme descontroladamente. A bomba atômica mata uma família
japonesa inteira. O kamikaze sabe que a guerra é algo sem sentido, mas afirma
que voltar para casa seria uma humilhação. O monge budista com o corpo em
chamas protesta contra a guerra do Vietnã (1969). Na China, um homem se coloca
na frente de uma fila de tanques de guerra, na Praça da Paz Celestial (1989),
em uma das mais emblemáticas imagens do Século XX.
A
violência praticada nas guerras e nos mais variados conflitos do último século
aparece em cenas de explosões, homens atirando e aviões bombardeando áreas
inteiras. Tudo isso nos remete à dificuldade do homem em conviver com o que é
diferente, em conviver em paz com o outro. Nós que aqui estamos por Vós esperamos
nos mostra os rostos de homens como Hitler, Stalin, Mao Tsé-Tung, Mussolini, Pol
Pot, Franco, Salazar, Idi Amin, Ceausescu, Ferdinand Marcos, Pinochet, Reza
Pahlavi, Videla, Médici e Mobutu. Assim, Marcelo Masagão faz o espectador do
filme lembrar de vários governantes autoritários que centralizaram o poder em
suas mãos e procuraram destruir os seus opositores. Em outras palavras, temos a
lembrança das experiências totalitárias e ditatoriais que tanto marcaram o
século passado. A imagem de tais regimes políticos está articulada à questão da
intolerância. Nesta perspectiva, merece atenção a sequência do filme que mostra
a queima de livros escritos por “autores degenerados” durante a Alemanha
nazista (1939), em um verdadeiro Fahrenheit 451 da vida real, como o
documentário nos sugere por meio de um letreiro. Como um comentário a esta
sequência da queima de livros, temos na tela trechos de autoria de Oscar Wilde,
Franz Kafka, Sigmund Freud e Karl Kraus, além de um breve relato da vida de um
nazista que veio morar no Brasil e aqui morreu obsessivo e brigado com os
vizinhos. Masagão deixa registrada a sua crítica ao totalitarismo.
Além dos líderes políticos autoritários, o filme também apresenta imagens de outras
figuras históricas importantes do século XX: “Che” Guevara, Gandhi, Martin
Luther King e John Lennon que, em um breve relato fictício, estão na lua
discutindo assuntos humanos. Nós que aqui estamos por Vós esperamos também
faz questão de abordar o papel assumido pela mulher ao longo do século passado:
elas ganharam espaço no mercado de trabalho, mudaram seus hábitos (maiô,
cigarro, minissaia) e lutaram pelo direito ao voto. Mas o filme nos lembra das
limitações das conquistas femininas: em um sequência, uma mulher que trabalhara
na indústria bélica, após o fim da guerra, volta a ficar reclusa ao ambiente
doméstico, cuidando dos filhos, do marido e sofrendo de depressão.
O
retrato do Século XX feito por Marcelo Masagão, portanto, é bastante complexo e
está articulado às contradições desse período da história da humanidade. Ao
mesmo tempo em que o homem realizou uma série de conquistas e avanços nos
campos das ciências, das artes e da tecnologia, ele também foi capaz de
produzir violência, desigualdade, opressão e morte. Nós que aqui estamos por Vós
esperamos problematiza, portanto, a noção de “progresso” na História.
Um bom exemplo disso está na questão em torno da eletricidade, tecnologia usada
tanto na iluminação/decoração durante a Exposição Universal de Paris, em 1900,
quanto na execução de um homem na cadeira elétrica (um sujeito que sequer tinha
luz elétrica em sua própria casa). As novas tecnologias podem ter usos
variados, para o bem e para o mal.
A
narrativa do filme de Marcelo Masagão não é rigidamente linear. As “pequenas
histórias” dos “grandes personagens” e as “grandes histórias” dos “pequenos
personagens” são contadas em uma sequência cheia de avanços e recuos no tempo
cronológico do Século XX, levando o espectador a refletir sobre alguns aspectos
da História contemporânea. Merece destaque o fato de o filme trabalhar com a
ideia da morte. Todos os personagens que aparecem em Nós que aqui estamos por Vós
esperamos já estão mortos, pertencem ao campo do passado. Não por
acaso, em diversos momentos do filme temos imagens de um cemitério e dos
túmulos ali existentes. São as histórias de pessoas já mortas que o filme
exibe. E o documentário se dedica a narrar tais histórias porque o passado não
pode simplesmente ser esquecido. O passado deve ser narrado para que os homens
do presente possam dar um lugar a ele e, desta maneira, fiquem liberados para
viver. Marcelo Masagão nos lembra de um importante papel exercido pela escrita
da História, a respeito do qual tão bem nos falou o historiador Michel de
Certeau:
“A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais. [...] a recondução do “morto” ou do passado, num lugar simbólico, articula-se, aqui, com o trabalho que visa a criar, no presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever-fazer”. A escrita acumula o produto desse trabalho. Através dele, libera o presente sem ter que nomeá-lo. Assim, pode-se dizer que ela faz mortos para que os vivos existam.” (CERTEAU, 2011: 110)
Mas
falar dos mortos também é um exercício válido porque ele nos lembra de nossa
própria condição humana. A vida humana é frágil e um dia, cedo ou tarde, todos
nós morreremos. É esse o recado transmitido pela mensagem existente na entrada
do cemitério filmado por Masagão, mensagem essa que dá nome ao filme: Nós
que aqui estamos por Vós esperamos. Os mortos estão à nossa espera
porque nós morreremos algum dia e nos juntaremos a eles. Aqui temos a ideia da “sequência
de gerações (contemporâneos, predecessores e sucessores)” que, Segundo Paul
Ricoeur (2010), é um instrumento que permite aos homens apreender o tempo
histórico.
Nesta
perspectiva, pouco importa se um determinado personagem do filme é “grande”
(como um chefe político) ou “pequeno” (como um operário). “Grandes” e “pequenos”,
agora estão todos mortos. Independentemente do papel que tenham exercido em
vida, todos são iguais na morte. Aqui, Nós que aqui estamos por Vós esperamos nos
lembra o epílogo de Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick: “Foi no reinado de
George III que estes personagens viveram e brigaram; bons ou maus, belos ou
feios, ricos ou pobres, agora eles são todos iguais”.
Referências:
CERTEAU,
Michel de. A Escrita da História. 3.
ed. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Revisão técnica de Arno Vogel. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2011.
RICOEUR,
Paul. Entre o tempo vivido e o tempo universal: o tempo histórico. In: ______. Tempo e Narrativa: o tempo narrado.
Tradução de Claudia Berliner. Revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de
Aguiar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 176-213. v. 3.
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O YouTube disponibiliza o filme Nós que aqui estamos por Vós esperamos na íntegra (data de acesso: 17 fev. 2015). Não deixe de assistir!