Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Sugestão de filme: "Nós que aqui estamos por Vós esperamos" (1999)

O filme Nós que aqui estamos por Vós esperamos (1999), de Marcelo Masagão, é excelente para se pensar sobre o Século XX. A obra é resultado de uma edição/montagem de várias sequências de imagens de arquivo – a maioria delas em preto e branco – acompanhadas por letreiros que contam as histórias de diversos personagens. Junto com as imagens e os letreiros, temos apenas as músicas que constituem a trilha sonora. Não há a voz de um narrador no filme.

Logo no início, letreiros anunciam que o filme apresentará uma “Memória do breve século XX” por meio de “Pequenas histórias/Grandes personagens” e “Pequenos personagens/Grandes histórias”. Com esta proposta, o filme apresenta imagens que remetem às rápidas transformações que ocorreram em várias áreas ao longo do século passado: a industrialização, o desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação e as novidades nos campos da pintura (Picasso), da psicanálise (Freud), da política (Revolução Russa) e da física (Einstein). No balanço feito por Masagão, todas essas transformações aconteceram de maneira muito rápida, o que nos remete ao tema da aceleração da História durante o Século XX. Como diz um dos próprios letreiros do filme, de um dia para o outro a cidade deixou de cheirar a cavalo. Mais do que qualquer outra época anterior, o século passado foi marcado por uma certa concepção de "progresso": o homem parecia cada vez mais apto a superar todos os seus limites.

Todavia, Nós que aqui estamos por Vós esperamos não faz uma apologia dessa ideia de progresso. Muito pelo contrário, o filme explora as contradições da contemporaneidade, denunciando os limites do ser humano. O alfaiate que tenta voar ao saltar da torre Eiffel, em Paris, acaba se arrebentando no chão. O ônibus espacial Challenger explode no céu, em 1986. Em tais imagens, Marcelo Masagão nos recorda que, apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, o homem continua sendo um ser limitado.

Outros momentos do documentário nos remetem ao mundo do trabalho no contexto do sistema capitalista. Na indústria automobilística, temos a inovação da linha de montagem. O Ford T é fabricado em série e em um ritmo cada vez mais ágil. É a produção que se acelera. O trabalhador é explorado com uma pesada jornada de trabalho e baixo salário. Mesmo tendo ajudado a fabricar vários carros ao longo da vida, o trabalhador nunca foi dono de um. O mundo do trabalho é o mundo da exploração: centenas de homens se aglomeram no formigueiro humano de Serra Pelada, no Brasil, em busca de ouro, trabalhando em condições degradantes. O mundo do trabalho não está dissociado do universo da política: o soviético que foi eleito operário padrão por cinco anos consecutivos, apaixonou-se por uma turista italiana, discordou do partido e acabou morrendo na Sibéria.

No campo cultural, o filme aborda o tema da internacionalização da cultura. A operária japonesa que fabrica aparelhos de TV é fã de Elvis Presley. O boliviano pobre que nunca assistiu a um programa televisivo gosta de Coca-Cola. Temos no documentário também uma reflexão sobre as mudanças no padrão de consumo durante o Século XX: o consumismo se revela na compra desenfreada de objetos como o rádio, a TV, o carro e os eletrodomésticos. Os novos hábitos levam ao vício em aspirina. Como se não bastasse, também temos referências ao universo do cinema (Fred Astaire), ao mundo do futebol (Mané Garrincha) e ao cenário da música (o festival de Woodstock). Também o campo das religiões é objeto de interesse de Marcelo Masagão. O filme apresenta cenas de manifestações religiosas, com fiéis de diversos credos, e parece desconfiar de tais religiões: mesmo a crença em Deus é questionada ao fim do documentário, quando Deus parece estar distante e alheio às tragédias do Século XX.

E o século passado é visto no filme como uma sucessão de várias tragédias. A crise econômica iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, provoca fome e desemprego. Um engenheiro passa a vender maçãs. Durante a Guerra Fria, a construção do Muro de Berlim é um acontecimento emblemático, que demonstra a separação entre os homens. Na China Comunista, a Revolução Cultural significa a morte de várias pessoas. E temos as guerras. Quatro gerações de homens de uma mesma família participaram, cada uma delas, de algum conflito ocorrido no Século XX: as duas Guerras Mundiais, a Guerra do Vietnã e a Guerra do Golfo. Um casal alemão é obrigado a se separar quando eclode a Primeira Guerra Mundial: ele (Hans) vai para a frente de batalha atirar bombas, enquanto ela (Anna) vai trabalhar em uma fábrica de bombas. Um homem sofre com o “Choque de guerra” e treme descontroladamente. A bomba atômica mata uma família japonesa inteira. O kamikaze sabe que a guerra é algo sem sentido, mas afirma que voltar para casa seria uma humilhação. O monge budista com o corpo em chamas protesta contra a guerra do Vietnã (1969). Na China, um homem se coloca na frente de uma fila de tanques de guerra, na Praça da Paz Celestial (1989), em uma das mais emblemáticas imagens do Século XX.

A violência praticada nas guerras e nos mais variados conflitos do último século aparece em cenas de explosões, homens atirando e aviões bombardeando áreas inteiras. Tudo isso nos remete à dificuldade do homem em conviver com o que é diferente, em conviver em paz com o outro. Nós que aqui estamos por Vós esperamos nos mostra os rostos de homens como Hitler, Stalin, Mao Tsé-Tung, Mussolini, Pol Pot, Franco, Salazar, Idi Amin, Ceausescu, Ferdinand Marcos, Pinochet, Reza Pahlavi, Videla, Médici e Mobutu. Assim, Marcelo Masagão faz o espectador do filme lembrar de vários governantes autoritários que centralizaram o poder em suas mãos e procuraram destruir os seus opositores. Em outras palavras, temos a lembrança das experiências totalitárias e ditatoriais que tanto marcaram o século passado. A imagem de tais regimes políticos está articulada à questão da intolerância. Nesta perspectiva, merece atenção a sequência do filme que mostra a queima de livros escritos por “autores degenerados” durante a Alemanha nazista (1939), em um verdadeiro Fahrenheit 451 da vida real, como o documentário nos sugere por meio de um letreiro. Como um comentário a esta sequência da queima de livros, temos na tela trechos de autoria de Oscar Wilde, Franz Kafka, Sigmund Freud e Karl Kraus, além de um breve relato da vida de um nazista que veio morar no Brasil e aqui morreu obsessivo e brigado com os vizinhos. Masagão deixa registrada a sua crítica ao totalitarismo.

Além dos líderes políticos autoritários, o filme também apresenta imagens de outras figuras históricas importantes do século XX: “Che” Guevara, Gandhi, Martin Luther King e John Lennon que, em um breve relato fictício, estão na lua discutindo assuntos humanos. Nós que aqui estamos por Vós esperamos também faz questão de abordar o papel assumido pela mulher ao longo do século passado: elas ganharam espaço no mercado de trabalho, mudaram seus hábitos (maiô, cigarro, minissaia) e lutaram pelo direito ao voto. Mas o filme nos lembra das limitações das conquistas femininas: em um sequência, uma mulher que trabalhara na indústria bélica, após o fim da guerra, volta a ficar reclusa ao ambiente doméstico, cuidando dos filhos, do marido e sofrendo de depressão.

O retrato do Século XX feito por Marcelo Masagão, portanto, é bastante complexo e está articulado às contradições desse período da história da humanidade. Ao mesmo tempo em que o homem realizou uma série de conquistas e avanços nos campos das ciências, das artes e da tecnologia, ele também foi capaz de produzir violência, desigualdade, opressão e morte. Nós que aqui estamos por Vós esperamos problematiza, portanto, a noção de “progresso” na História. Um bom exemplo disso está na questão em torno da eletricidade, tecnologia usada tanto na iluminação/decoração durante a Exposição Universal de Paris, em 1900, quanto na execução de um homem na cadeira elétrica (um sujeito que sequer tinha luz elétrica em sua própria casa). As novas tecnologias podem ter usos variados, para o bem e para o mal.

A narrativa do filme de Marcelo Masagão não é rigidamente linear. As “pequenas histórias” dos “grandes personagens” e as “grandes histórias” dos “pequenos personagens” são contadas em uma sequência cheia de avanços e recuos no tempo cronológico do Século XX, levando o espectador a refletir sobre alguns aspectos da História contemporânea. Merece destaque o fato de o filme trabalhar com a ideia da morte. Todos os personagens que aparecem em Nós que aqui estamos por Vós esperamos já estão mortos, pertencem ao campo do passado. Não por acaso, em diversos momentos do filme temos imagens de um cemitério e dos túmulos ali existentes. São as histórias de pessoas já mortas que o filme exibe. E o documentário se dedica a narrar tais histórias porque o passado não pode simplesmente ser esquecido. O passado deve ser narrado para que os homens do presente possam dar um lugar a ele e, desta maneira, fiquem liberados para viver. Marcelo Masagão nos lembra de um importante papel exercido pela escrita da História, a respeito do qual tão bem nos falou o historiador Michel de Certeau:

“A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais. [...] a recondução do “morto” ou do passado, num lugar simbólico, articula-se, aqui, com o trabalho que visa a criar, no presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever-fazer”. A escrita acumula o produto desse trabalho. Através dele, libera o presente sem ter que nomeá-lo. Assim, pode-se dizer que ela faz mortos para que os vivos existam.” (CERTEAU, 2011: 110)

Mas falar dos mortos também é um exercício válido porque ele nos lembra de nossa própria condição humana. A vida humana é frágil e um dia, cedo ou tarde, todos nós morreremos. É esse o recado transmitido pela mensagem existente na entrada do cemitério filmado por Masagão, mensagem essa que dá nome ao filme: Nós que aqui estamos por Vós esperamos. Os mortos estão à nossa espera porque nós morreremos algum dia e nos juntaremos a eles. Aqui temos a ideia da “sequência de gerações (contemporâneos, predecessores e sucessores)” que, Segundo Paul Ricoeur (2010), é um instrumento que permite aos homens apreender o tempo histórico.

Nesta perspectiva, pouco importa se um determinado personagem do filme é “grande” (como um chefe político) ou “pequeno” (como um operário). “Grandes” e “pequenos”, agora estão todos mortos. Independentemente do papel que tenham exercido em vida, todos são iguais na morte. Aqui, Nós que aqui estamos por Vós esperamos nos lembra o epílogo de Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick: “Foi no reinado de George III que estes personagens viveram e brigaram; bons ou maus, belos ou feios, ricos ou pobres, agora eles são todos iguais”.


Referências:

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3. ed. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Revisão técnica de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

RICOEUR, Paul. Entre o tempo vivido e o tempo universal: o tempo histórico. In: ______. Tempo e Narrativa: o tempo narrado. Tradução de Claudia Berliner. Revisão da tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 176-213. v. 3.

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O YouTube disponibiliza o filme Nós que aqui estamos por Vós esperamos na íntegra (data de acesso: 17 fev. 2015). Não deixe de assistir!