Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

domingo, 28 de junho de 2015

Goiás Velho em 1751

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas se instalaram na região do atual estado de Goiás em busca de ouro, onde fundaram vários arraiais. Um destes locais foi o arraial de Santa Ana, que foi fundado por Bartolomeu Bueno da Silva em 1727. Bartolomeu era conhecido como o Segundo Anhanguera, pois era filho do sertanista conhecido como o Velho Anhanguera. O referido arraial foi erguido às margens do rio Vermelho, em cujas águas havia ouro, e teve o seu nome mudado para Vila Boa de Goiás. Em 1748, com a criação da capitania de Goiás, o local foi elevado ao status de capital. A cidade - que também é conhecida como Goiás Velho - foi a capital goiana até 1937 e atualmente é um importante centro histórico do estado.

Abaixo, temos um dos primeiros registros de Vila Boa de Goiás. Trata-se de um desenho feito em 1751, no qual podemos ver algumas características urbanísticas do antigo vilarejo goiano:

Figura A.

Que tal explorarmos mais detalhadamente alguns aspectos da imagem? Veja abaixo o mesmo desenho, agora com alguns números que nos ajudarão a entender certas partes do desenho:

Figura B.

Legenda da Figura B:

1.
Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. Militares começaram a construí-la, mas não puderam terminar a obra porque foram proibidos de ser donos de igrejas. A Irmandade dos Homens Pardos concluiu a construção em 1779. O local abriga hoje um museu de arte sacra. Todos os anos, durante a Semana Santa, é dela que sai a Procissão do Fogaréu.

Figura C. Fachada da antiga Igreja de Nossa
Senhora da Boa Morte, em Goiás Velho (atual
cidade de Goiás), hoje transformada em Museu
de Arte Sacra. Imagem da internet.

2. Casa da Real Intendência, um dos poucos sobrados erguidos em Vila Boa, no século XVIII. A Intendência era um órgão criado pelo governo de Portugal para administrar as lavras nas regiões auríferas. O intendente devia regular as concessões, as relações entre os mineradores e a arrecadação dos tributos. O local também funcionou como casa de fundição.

3. Identificada no desenho como "Casas da residência do general", essa construção é conhecida hoje como Palácio do Conde dos Arcos. Foi a residência oficial dos governadores de Goiás até 1937. O local hoje abriga um museu.

Figura D. Palácio do Conde dos Arcos.
Imagem da internet.

4. Símbolo do poder público, a Câmara Municipal e a cadeia funcionavam em um mesmo prédio. Em 1766, ambas foram transferidas para outro prédio. O costume de manter as duas instituições em um mesmo edifício perdurou até os primeiros tempos do Império.

5. Rua dos Mercadores, cujas casas tinham por característica a ausência de janelas voltadas para a rua.

6. Igreja Matriz de Nossa Senhora de Santana, cuja construção começou em 1734. Erguida de maneira precária, seu teto desabou em 1759 e a população arcou com os custos da reconstrução. Desde então foi reformada várias vezes.

Figura E. Igreja Matriz de Nossa Senhora de Santana.
Imagem da internet.

7. Consistório (sede) da Irmandade do Senhor dos Passos.

8. Consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

Fonte: História em Movimento vol. II, de Gislane C. Azevedo e Reinaldo Seriacopi (São Paulo: Ática, 2011, p. 212-213).

terça-feira, 16 de junho de 2015

Imagens da Primeira Guerra Mundial em cartões-postais franceses e alemães

O uso de imagens na pesquisa histórica tem sido uma prática recorrente em trabalhos de vários historiadores. Pinturas, fotografias, cartazes e tantos outros recursos imagéticos – quando tomados como documentos históricos – podem auxiliar o historiador na compreensão de uma determinada época. Não se trata de ver nesses materiais uma reprodução fiel da realidade, mas sim uma forma de reinterpretar a própria realidade, muitas vezes nos revelando informações sobre aqueles sujeitos que os produziram.

Um ótimo exemplo de uso de imagens na pesquisa histórica pode ser visto no texto Gloriosa conquista ou cruel destruição? A Grande Guerra (1914-1918) representada em cartões-postais alemães e franceses, de autoria de Marco Antonio Stancik. Nele, o autor analisa as imagens presentes nos anversos de cartões-postais alemães e franceses produzidos durante a Primeira Guerra Mundial. Nas palavras de Stancik, “incontáveis cartões-postais daquele período foram produzidos por diferentes países envolvidos no conflito, estampando cenas de caráter nitidamente belicoso. Ao fazê-lo não apenas contribuíam para manter o assunto presente, como muitas vezes mostravam-se propensos a reafirmar a necessidade de combater ao inimigo. Para tanto, tendiam a exibir divergentes interpretações daquilo que vinha se passando, tanto na frente de combate, como no front doméstico, onde as mulheres tiveram que substituir aos homens, tanto nas fábricas, como no campo”.

Stancik faz questão de destacar ainda que os cartões-postais eram usados como “verdadeiras armas de guerra, embora de aparência singela, por intermédio das quais, entre outras finalidades, seus criadores empenhavam-se no sentido de estimular e tornar possível o seu prosseguimento, mediante a intenção de obter não apenas a adesão como ainda o convencimento de militares e civis, quando não o desencorajamento dos inimigos”. É curioso perceber que os cartões-postais tinham um conteúdo visivelmente “patriótico” e “belicoso”, onde o inimigo quase sempre era representado de maneira negativa, ora como “cruel” e “insensível” ora como “derrotado” e “impossibilitado” de vencer a guerra.

O autor procura demonstrar em seu texto que, embora as situações retratadas nos postais fossem reais, elas eram “representadas de forma intensamente simbólica, prenhe de significados. Por isso, o que mais se destaca nos cartões-postais do período não é necessariamente sua veracidade. Em seu lugar, esse ‘algo mais’ de que se revestem todas as mensagens assim veiculadas revelam aspectos por vezes pouco explorados daqueles longos e sangrentos quatro anos que inauguraram verdadeiramente o conturbado século XX. Afinal, a despeito de sua enganosa aparência de inocentes e despretensiosos souvenirs, os postais inseriam-se assim no cotidiano daqueles que encontravam-se afetados pela guerra. Ao fazê-lo, tomavam parte de lutas simbólicas, por intermédio das quais militares e civis eram estimulados a prosseguirem lutando, ou talvez fossem desmotivados por mensagens que intentavam convencê-los de que isso seria impraticável. E nesse empreendimento elementos de destaque, ou mesmo pequenos detalhes tornavam-se pronunciadamente significativos: um pickelhaube, como distintivo dos alemães, assim como o vermelho intenso das calças usadas pela Infantaria francesa, ou um monumento como a Torre Eiffel. Aspectos esses que tendiam a atrair a simpatia/veneração, ou a aversão, conforme a origem daquele que os observasse”.

O texto de Marco Antonio Stancik foi publicado na revista Temporalidades. Para ler o artigo na íntegra, clique aqui

domingo, 14 de junho de 2015

Sugestão de filme: "Parágrafo 175" (2000)

A perseguição sofrida pelos judeus na Alemanha nazista é um tema bastante conhecido. De fato, muito já se escreveu sobre o Holocausto. E muitos foram os filmes que trataram do extermínio dos judeus na Alemanha sob o governo de Adolf Hitler. Mas os nazistas não perseguiam apenas judeus. Como pode ser visto na imagem abaixo, dissidentes políticos, criminosos, testemunhas de Jeová e outros grupos também sofriam com a violência imposta pelos adeptos do nazismo. Os judeus não foram os únicos a serem enviados aos campos de concentração.

Na imagem acima, além da suástica, vê-se os triângulos de identificação, 
que eram usados para identificar o grupo ao qual pertencia o
prisioneiro do campo de concentração.

Entre os grupos perseguidos pelos nazistas, chama a atenção aquele identificado pelo triângulo rosa invertido, o dos homens homossexuais. Este é um assunto que ainda não é abordado com muitos detalhes em livros didáticos e, sendo assim, gostaríamos de sugerir aqui um filme que pode ser útil no estudo deste tema: o documentário LGBT Parágrafo 175, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, que foi lançado no ano 2000. O título do filme faz uma referência ao parágrafo/artigo de número 175 do Código Penal Alemão de 1871, que estabelecia o seguinte: "Um ato sexual antinatural entre pessoas de sexo masculino ou por humanos com animais é punível com a prisão e a perda dos direitos civis pode lhe ser imposta". Em outras palavras, a homossexualidade era vista como um crime na Alemanha desde o século XIX.

Qual terá sido então o modo como o nazismo lidou com os homossexuais? É a essa pergunta que Parágrafo 175 procura responder. Logo no início, o documentário nos informa que mais de 100.000 homens foram presos na Alemanha durante os anos do nazismo, acusados de serem homossexuais. Destes, entre 10 e 15 mil chegaram a ser enviados para campos de concentração, onde muitos morreram. Quando o filme foi produzido, apenas 10 dos sobreviventes ainda estavam vivos, e são os depoimentos de alguns destes homens que o documentário explora para investigar a perseguição sofrida pelos homossexuais durante o regime de Adolf Hitler.

Nos depoimentos presentes no filme é visível o desconforto sentido pelos entrevistados - todos idosos - ao lembrar de acontecimentos tão terríveis. O passado incomoda e lembrar dele dói - um dos entrevistados chega a chorar durante a sua fala -, todavia, é impossível esquecer o que aconteceu e seguir em frente como se nada tivesse ocorrido. Daí decorre a necessidade de narrar o trauma, por mais dolorosa que possa ser esta tarefa.

Para além da questão em torno da memória e do esquecimento na História, o filme Parágrafo 175 oferece uma série de elementos para se pensar como viviam os homossexuais na Alemanha da primeira metade do século XX. A Berlim dos anos 1920 é descrita como o "paraíso dos homossexuais", onde havia vários bares e bailes frequentados por gays e lésbicas, quando o artigo 175 do Código Penal Alemão era ignorado na prática por muitas pessoas. Assim, os entrevistados recordam aqueles anos anteriores ao nazismo, destacando suas primeiras experiências sexuais e seus primeiros relacionamentos amorosos em um ambiente de relativa liberdade. Todavia, com o advento do regime de Hitler na Alemanha, a situação dos homossexuais mudou. Começaram as perseguições, as prisões, os espancamentos e os assassinatos. Os nazistas fecharam bares e boates gays. A Juventude Hitlerista perseguia violentamente os homossexuais. Os homens judeus que também eram gays sofriam com uma dupla perseguição.

O documentário nos informa que a Gestapo chegou a criar um departamento para combater o "crime da homossexualidade". Vale salientar também as diferenças no tratamento da homossexualidade masculina e da homossexualidade feminina. Enquanto os homens gays eram vistos como portadores de uma doença contagiosa que precisava ser erradicada a todo custo, o lesbianismo era visto, por sua vez, como uma condição temporária e curável. Poucas lésbicas foram enviadas para os campos de concentração, em comparação ao número de homens homossexuais. Muitas mulheres lésbicas foram para o exílio, casaram-se com homens gays e até sumiram da vista pública. Nos campos de concentração, os homens gays eram agredidos, violentados, mortos e até usados em experiências científicas (alguns foram castrados).

O fim da Segunda Guerra Mundial e a derrocada do nazismo na Alemanha não melhoraram de imediato a situação dos homossexuais naquele país. Afinal, o artigo 175 continuou em vigor depois da guerra por mais alguns anos. No final do século XX, época da produção do filme Parágrafo 175, nenhum dos homossexuais perseguidos pelo nazismo que sobreviveram havia recebido ainda algum tipo de reconhecimento ou indenização.

O filme de Rob Epstein e Jeffrey Friedman nos permite pensar sobre um tema que nem sempre é tratado com a devida atenção pelos historiadores e, sobretudo, pelos professores de História da Educação Básica. Falar da perseguição sofrida pelos homossexuais durante o nazismo é importante porque nos instiga a pensar sobre até que ponto pode chegar a intolerância. Assim, Parágrafo 175 não é apenas um filme instigante, mas extremamente necessário para a nossa atualidade, uma vez que várias formas de preconceito ainda persistem. Recomendado.

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O site YouTube disponibiliza na íntegra o filme Parágrafo 175 (acesso no dia 14 de junho de 2015). Vale a pena assistir!


As outras Chicas da Silva*

*Texto escrito por Eduardo França Paiva e originalmente publicado na revista Aventuras na História (01 fev. 2004).

A América portuguesa viveu enormes transformações a partir do século 18. Houve intenso processo de urbanização e aumento populacional, principalmente entre escravos e aqueles que tinham adquirido a carta de alforria, chamados de forros. Etnias encontraram-se, conviveram, coexistiram e, também, sustentaram conflitos. Nas cidades, muito mais que nas áreas rurais, a mobilidade física e social foi marcante. Aí, o universo cultural brasileiro consolidou-se baseado na diversidade, no hibridismo e na impermeabilidade dos costumes e das tradições, mesmo que, nesse último caso, mais no discurso que na prática. Homens e mulheres, livres, libertos e escravos construíram esse ambiente e dele usufruíram o quanto puderam e como puderam.

O ouro, de início, fomentou as mudanças, mas não foi ele o único elemento responsável por elas. Já nas primeiras décadas de ocupação das terras das Minas Gerais, gente de variada origem tentou fazer fortuna não apenas minerando, mas plantando roças e criando animais, oferecendo serviços de todo tipo e, sobretudo, praticando algum comércio. Nas vilas e arraiais das Minas tudo isso existiu, e nunca os escravos estiveram excluídos dessas possibilidades. Ruas, vielas, chafarizes e becos hospedaram milhares e milhares de escravos de ganho, de negras de tabuleiro, de coartados – cativos que pagavam sua alforria em parcelas, durante três ou quatro anos – e de forros. Enquanto alguns sobreviviam a duras penas, outros, e não foram poucos, conseguiam ganhar dinheiro, com o qual compravam a liberdade, casas, roupas, ferramentas de trabalho, jóias e também escravos.

As mulheres ocuparam lugar destacado nesse mundo urbano colonial. Quando escravas, várias conheciam, além de autonomia, alguma fortuna. Depois de libertas, muitas outras ascendiam social e economicamente, transformavam-se em importantes comerciantes e proprietárias de escravos, e engrossavam a camada média urbana que habitava a antiga capitania. Mulheres como essas foram responsáveis por grande parte do consumo de tecidos produzidos na Índia especialmente para o Brasil.

Ignácia Ribeira, forra, moradora no arraial do Pompeu em 1777, possuía uma venda de secos e molhados, um escravo, ouro lavrado em barra, um colar de corais e tinha pago uma quantia avultada por sua liberdade: cerca de 300 mil réis. Izabel Pinheira, angolana, morreu viúva, no arraial da Roça Grande, em 1741, possuindo sete escravos que ficaram alforriados e coartados no testamento deixado por ela. Entre as mais afortunadas, estava a crioula Bárbara de Oliveira, natural da Bahia, que se mudara para Sabará, onde morreu em 1766. Ela possuía 22 escravos (mais mulheres que homens – um conjunto de grande porte, incomum até mesmo entre proprietários brancos). Também tinha muitas joias e roupas guardadas em canastras, como “uma saia de primavera de seda, uma de droguete preto e uma de seda passado de ouro”. Ela possuía, ainda, ouro lavrado e em pó e muitos créditos na praça.

É provável que a origem de sua fortuna estivesse ligada, de alguma forma, à prostituição e, talvez, por isso, ela, em testamento, alforriasse e coartasse quase todas as suas escravas e os filhos delas. Um último exemplo: a crioula Bárbara Gomes de Abreu e Lima, que morreu em Sabará, em 1735. Depois de comprar sua alforria, ela formou uma invejável fortuna e montou uma impressionante rede de relações sociais com alguns dos homens mais ricos e importantes da vila. Bárbara morava em um sobrado imponente, na rua principal, mas possuía outras casas. Tinha muito ouro em pó e lavrado, créditos às dezenas e negócios que não ficaram revelados espalhados por várias regiões de Minas e pela Bahia, de onde viera ainda cativa. De Sabará, ela tudo controlava. Tinha apenas sete escravos, o que não condizia com sua riqueza.

Já entre berloques e balangandãs, sua posição social aparecia mais explicitamente: dezenas de cordões de ouro, vários com corais engranzados, como se dizia na época; além de tecidos de várias partes do mundo. Bárbara era uma das muitas negras que, como Chica da Silva, a amante do contratador João Fernandes, ajudaram a decidir os rumos de Minas. Cada vez mais a nova historiografia demonstra que essas mulheres não eram exceções nem gente alienada. Elas não lutaram contra a escravidão dos irmãos de cor e de raça, mas, ao atuarem no dia-a-dia, ajudaram a constituir uma sociedade diferente.