*Texto escrito por Eduardo França Paiva e originalmente publicado na revista Aventuras na História (01 fev. 2004).
A
América portuguesa viveu enormes transformações a partir do século 18. Houve
intenso processo de urbanização e aumento populacional, principalmente entre
escravos e aqueles que tinham adquirido a carta de alforria, chamados de
forros. Etnias encontraram-se, conviveram, coexistiram e, também, sustentaram
conflitos. Nas cidades, muito mais que nas áreas rurais, a mobilidade física e
social foi marcante. Aí, o universo cultural brasileiro consolidou-se baseado
na diversidade, no hibridismo e na impermeabilidade dos costumes e das
tradições, mesmo que, nesse último caso, mais no discurso que na prática.
Homens e mulheres, livres, libertos e escravos construíram esse ambiente e dele
usufruíram o quanto puderam e como puderam.
O
ouro, de início, fomentou as mudanças, mas não foi ele o único elemento
responsável por elas. Já nas primeiras décadas de ocupação das terras das Minas
Gerais, gente de variada origem tentou fazer fortuna não apenas minerando, mas
plantando roças e criando animais, oferecendo serviços de todo tipo e,
sobretudo, praticando algum comércio. Nas vilas e arraiais das Minas tudo isso
existiu, e nunca os escravos estiveram excluídos dessas possibilidades. Ruas,
vielas, chafarizes e becos hospedaram milhares e milhares de escravos de ganho,
de negras de tabuleiro, de coartados – cativos que pagavam sua alforria em
parcelas, durante três ou quatro anos – e de forros. Enquanto alguns
sobreviviam a duras penas, outros, e não foram poucos, conseguiam ganhar
dinheiro, com o qual compravam a liberdade, casas, roupas, ferramentas de
trabalho, jóias e também escravos.
As
mulheres ocuparam lugar destacado nesse mundo urbano colonial. Quando escravas,
várias conheciam, além de autonomia, alguma fortuna. Depois de libertas, muitas
outras ascendiam social e economicamente, transformavam-se em importantes
comerciantes e proprietárias de escravos, e engrossavam a camada média urbana
que habitava a antiga capitania. Mulheres como essas foram responsáveis por
grande parte do consumo de tecidos produzidos na Índia especialmente para o
Brasil.
Ignácia
Ribeira, forra, moradora no arraial do Pompeu em 1777, possuía uma venda de
secos e molhados, um escravo, ouro lavrado em barra, um colar de corais e tinha
pago uma quantia avultada por sua liberdade: cerca de 300 mil réis. Izabel
Pinheira, angolana, morreu viúva, no arraial da Roça Grande, em 1741, possuindo
sete escravos que ficaram alforriados e coartados no testamento deixado por
ela. Entre as mais afortunadas, estava a crioula Bárbara de Oliveira, natural
da Bahia, que se mudara para Sabará, onde morreu em 1766. Ela possuía 22
escravos (mais mulheres que homens – um conjunto de grande porte, incomum até
mesmo entre proprietários brancos). Também tinha muitas joias e roupas
guardadas em canastras, como “uma saia de primavera de seda, uma de droguete
preto e uma de seda passado de ouro”. Ela possuía, ainda, ouro lavrado e em pó
e muitos créditos na praça.
É
provável que a origem de sua fortuna estivesse ligada, de alguma forma, à
prostituição e, talvez, por isso, ela, em testamento, alforriasse e coartasse
quase todas as suas escravas e os filhos delas. Um último exemplo: a crioula
Bárbara Gomes de Abreu e Lima, que morreu em Sabará, em 1735. Depois de comprar
sua alforria, ela formou uma invejável fortuna e montou uma impressionante rede
de relações sociais com alguns dos homens mais ricos e importantes da vila.
Bárbara morava em um sobrado imponente, na rua principal, mas possuía outras
casas. Tinha muito ouro em pó e lavrado, créditos às dezenas e negócios que não
ficaram revelados espalhados por várias regiões de Minas e pela Bahia, de onde
viera ainda cativa. De Sabará, ela tudo controlava. Tinha apenas sete escravos,
o que não condizia com sua riqueza.
Já
entre berloques e balangandãs, sua posição social aparecia mais explicitamente:
dezenas de cordões de ouro, vários com corais engranzados, como se dizia na
época; além de tecidos de várias partes do mundo. Bárbara era uma das muitas
negras que, como Chica da Silva, a amante do contratador João Fernandes,
ajudaram a decidir os rumos de Minas. Cada vez mais a nova historiografia
demonstra que essas mulheres não eram exceções nem gente alienada. Elas não
lutaram contra a escravidão dos irmãos de cor e de raça, mas, ao atuarem no
dia-a-dia, ajudaram a constituir uma sociedade diferente.