Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

sexta-feira, 24 de junho de 2016

[Seção dos Alunos]: O que você sabe sobre as tribos indígenas de hoje em dia?

Olá, o meu nome é Clara, tenho 15 anos, estudo na Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG) e sou do 2° G (2016). Cresci em uma cidade que ficava entre as aldeias Xingu e Mehinako, e posso lhes contar um pouco da minha experiência dentro da sociedade desses povos.

Quando vivi em Mato Grosso, uma coisa bem comum na minha vida era andar pela cidade e encontrar índios por toda a parte. Eu morava em uma cidade pequena, Gaúcha do Norte–MT, um lugar próximo às duas aldeias indígenas mencionadas acima. Naquela época pude observar algumas coisas sobre o comportamento daqueles povos. Alguns índios vão para a cidade apenas para ir ao médico e fazer documentos, pois até as votações eleitorais são feitas nas aldeias. Nessas comunidades existe uma hierarquia muito marcante, já que, por exemplo, apenas os filhos ou os parentes mais próximos dos caciques têm o direito de morar nas cidades.

Algo que normalmente não vemos muito nos nossos livros didáticos de História ou Sociologia quando eles nos falam sobre os povos indígenas é que os índios vivem em uma realidade bem distinta daquela das médias e grandes cidades brasileiras. Muitas de suas crenças ainda estão vivas como, por exemplo, a ideia de “maldição dos irmãos gêmeos”. De acordo com essa crença, quando nascem irmãos gêmeos, um é do mal e o outro do bem, e por isso eles enterram vivo aquele que acreditam ser o gêmeo do mal. Sua alimentação também é bastante diferente da nossa, pois eles comem de peixe até macacos assados.

Uma história que eu ouvia muito em Gaúcha do Norte girava em torno de dois anciãos indígenas que comiam cérebro humano. Todavia, ainda não sei dizer se isso era mesmo verdade, pois apesar de sabermos que certos povos indígenas praticavam/praticam a antropofagia, também sabemos que histórias como essas foram inventadas tanto no passado quanto no presente para dar a ideia de que tais povos são “selvagens”.

Também é preciso dizer que não era só porque morávamos perto das aldeias que tínhamos livre acesso a elas, já que só se pode entrar nelas (de avião ou barco) após pedir e obter a permissão do cacique. O meu pai ainda é amigo de um deles, o cacique Matulah. Aliás, a mulher desse cacique – que se chama Potira – até já pintou os meus braços com os desenhos usados por eles em festas. Uma curiosidade é que só as mulheres aprendem a arte da pintura do corpo, onde esmagam uma semente e a misturam a alguns líquidos até virar uma tinta que, na maioria das vezes, é preta ou vermelha. Essa tinta, após ser aplicada ao corpo, pode demorar até 40 dias para sair. Em Gaúcha do Norte, todos os anos há uma feira cultural e os índios das duas tribos geralmente participam dela e fazem algumas danças para nós vermos. É realmente um espetáculo muito bonito!

Ah, quando os índios dessas duas aldeias vão até a cidade, eles usam roupas sim. As mulheres usam longos vestidos floridos e os homens vestem blusas e calças. Hoje em dia, é bem normal você ter um índio estudando na sua sala caso você seja aluno de alguma das escolas de lá.

A cultura indígena é linda, e não há como ficarmos indiferentes às singularidades desses povos, pois muitos dos hábitos deles são bem distintos dos nossos.

Abaixo, apresento algumas fotografias tiradas por meu pai, que diga-se de passagem é fotógrafo:













segunda-feira, 4 de abril de 2016

A Revolução Francesa vista de diferentes maneiras

A Revolução Francesa enquanto um complexo processo histórico suscitou as mais diferentes interpretações por parte dos historiadores ao longo do tempo. Assim, cada pesquisador analisou os acontecimentos que se desenrolaram na França no final do século XVIII fazendo distintos “recortes” na realidade.

Muitos historiadores concordam que a Revolução Francesa teve essencialmente um caráter burguês, embora também tenha recebido o apoio de camponeses, da população pobre urbana e de alguns integrantes do clero e da nobreza. Todavia, não há um consenso absoluto sobre tal caráter burguês da Revolução.

Outro ponto que já gerou grandes discussões é a relação das ideias do Iluminismo com o desenrolar da Revolução Francesa. Segundo certos pesquisadores, os ideais da Revolução eram baseados no Iluminismo. Na obra As origens intelectuais da Revolução Francesa (1933), Daniel Mornet (1878-1954) defendeu a ideia de que havia na França uma circulação das ideias iluministas que percorria hierarquicamente o seguinte caminho: elites → burguesia → pequena burguesia → povo. Ainda de acordo com Mornet, as ideias iluministas eram difundidas a partir de Paris, e eram levadas da capital em direção às regiões periféricas da França. A conclusão do autor é que o Iluminismo foi essencial para a derrubada do absolutismo em solo francês. A interpretação feita por Mornet foi reproduzida por diversos outros historiadores, assim, muitos pesquisadores argumentaram que a própria Declaração dos Direitos do Homem apresentava um conteúdo baseado nas ideias iluministas.

Mas a análise feita por Mornet não foi aceita por todos os historiadores, pois certos pesquisadores questionaram a ideia de que o Iluminismo levou por si só à Revolução Francesa. Um argumento comum em tais críticas diz respeito ao fato de que, para muitos dos iluministas, a figura de um déspota esclarecido, ou seja, o rei, é quem deveria impulsionar o governo.

Na época do bicentenário da Revolução Francesa, já no final do século XX, o historiador Roger Chartier (1945-) publicou o livro As origens culturais da Revolução Francesa, no qual ele inverteu a forma da análise feita por Mornet. Para Chartier, não foi o Iluminismo que gerou a Revolução Francesa, mas o contrário, ou seja, o processo revolucionário é que gerou o Iluminismo, pois, de acordo com o autor, os revolucionários é que selecionaram alguns pensadores tais como Voltaire, Rousseau, Mably e Raynal, para justificar e legitimar a Revolução, no intuito de demonstrar que eles – os revolucionários de 1789 – estariam apenas colocando em prática as ideias de tais filósofos “das Luzes”. Ademais, Chartier ainda questionou em sua obra a capacidade de livros terem provocado a Revolução Francesa, argumentando que os livros de pensadores iluministas eram lidos tanto por apoiadores quanto por opositores do rei da França, ou seja, tais livros não foram uma condição sine qua non para o início da Revolução Francesa, uma vez que eles eram lidos e interpretados de distintas formas pelos seus diferentes leitores.

Seguindo uma linha de raciocínio próxima à de Roger Chartier, a historiadora francesa contemporânea Joëlle Chevé também afirmou que os revolucionários de 1789 na França precisavam de um suporte teórico para fundamentar e legitimar as suas ações, e que o Iluminismo foi escolhido por eles para isso. Ademais, Chevé também salientou em distintas pesquisas que muitos dos chamados “enciclopedistas”, ou seja, os pensadores ligados à produção dos volumes da Enciclopédia (obra coletiva organizada por Denis Diderot e Jean le Rond d’Alembert) não eram favoráveis à ideia de revolução, uma vez que eles se consideravam os protótipos do novo gênero humano. Tal concepção elitista estava afastada da preocupação com a questão da igualdade universal. Com tais argumentos, a autora defendeu a ideia de que não há razão para afirmar que o Iluminismo foi preponderante no processo que levou à Revolução Francesa. De acordo com a pesquisadora, a própria falência do Estado Absolutista e o enfraquecimento das instituições já são suficientes para explicar o fim do Antigo Regime na França.

Quanto ao caráter burguês da Revolução Francesa, este é realmente um tema que gerou distintas interpretações por parte dos estudiosos. O norte-americano Robert Darnton (1939-) argumentou que a oposição entre a nobreza e a burguesia naquele contexto histórico não era tão clara. Assim, a partir de tal perspectiva, é importante lembrarmos que muitos nobres começaram a fazer negócios no campo do comércio, aburguesando-se, enquanto que houve casos de burgueses que estavam interessados em garantir privilégios e até mesmo em tornar-se nobres, comprando inclusive títulos de nobreza para isso.

Por sua vez, o historiador francês François Furet (1927-1997), autor da obra Pensando a Revolução Francesa (1978) criticou a caracterização da referida Revolução como uma revolução burguesa porque, segundo ele, houve na época várias revoluções em andamento ao mesmo tempo, e não apenas uma, já que as classes populares urbanas e os camponeses fizeram as suas próprias revoluções. Os camponeses, por exemplo, adotaram em determinados momentos uma postura até mesmo reacionária, defendendo a volta de certas garantias feudais de que gozavam no passado. Ademais, segundo Furet, a aristocracia esclarecida, que protegeu os iluministas, talvez tenha tido um papel mais importante que o da burguesia, que se mostrou bastante conservadora em diversos momentos da Revolução Francesa.

Cabe mencionar ainda a análise feita pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) a respeito da Revolução Francesa que está presente em sua obra A Era das Revoluções (1962). Para ele, embora a Revolução não tenha sido o produto de um único partido, houve um consenso de ideias entre a burguesia e o liberalismo iluminista. Os burgueses tiveram, de acordo com Hobsbawm, um papel fundamental na Revolução, uma vez que tinham uma forte presença política e intelectual junto ao Terceiro Estado, tendo a burguesia sido capaz – contando para isto com o apoio dos camponeses e dos trabalhadores – de fazer o rei convocar os Estados Gerais.

Como se vê, são muitas as interpretações a respeito da Revolução Francesa. Não se trata de escolhermos a visão mais “correta” acerca de tal acontecimento histórico, mas de conhecermos os diferentes pontos de vista interpretativos sobre o assunto, de modo que possamos compreender a grande complexidade que envolveu tal processo. O importante é percebermos que o tipo da interpretação historiográfica está relacionado aos critérios que cada historiador adota para analisar determinado processo histórico. No intuito de deixarmos mais clara esta nossa última observação, façamos agora a leitura de dois trechos extraídos dos textos de diferentes historiadores que se debruçaram sobre o tema da Revolução Francesa. Vejamos:

Texto 1 - “Se não é certo que a França estivesse prestes a alcançar a Inglaterra em 1789, o balanço econômico do período revolucionário é, ainda assim, negativo, incluindo, entre outros, fenômenos de desindustrialização e desastre do comércio marítimo e colonial. A recuperação napoleônica foi insuficiente: em 1815, expandira-se a distância entre a França e uma Inglaterra definitivamente dona dos mares e dominante em todos os circuitos comerciais. A revolução jurídica contribuiu para liberar – às custas de uma miséria notoriamente maior para os mais desfavorecidos – certas forças antigamente obstruídas; porém, não se pode considerar modernizador o desenvolvimento considerável da pequena propriedade agrícola induzido pela Revolução. Ademais, o período revolucionário e imperial parece ter enraizado comportamentos pouco favoráveis ao desenvolvimento econômico, a começar pelo gosto excessivo das elites pelas carreiras na administração pública e do exército.”(BLUCHE, Frédéric [et al.]. Revolução Francesa. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 141.)

Texto 2 - “Levando em consideração seus resultados gerais, a Revolução Inglesa desempenhou na história da Inglaterra um papel equivalente ao da Revolução Francesa na história da França. Ela não só substituiu uma poderosa monarquia absoluta por um governo representativo, porém não democrático, terminando com o domínio exclusivo da Igreja de Estado perseguidora, como também preparou o caminho para o desenvolvimento do capitalismo. Segundo um dos seus mais recentes historiadores, ‘ela colocou um ponto final na Idade Média’. Os últimos vestígios do feudalismo foram varridos, os arrendamentos feudais abolidos, assegurando à classe dos proprietários fundiários a absoluta posse dos seus bens. O confisco e a venda dos bens da Igreja, da Coroa e dos partidários do rei romperam as tradicionais relações feudais no campo e aceleraram a acumulação de capital. As corporações perderam toda importância econômica; os monopólios comerciais, financeiros e industriais foram abolidos. Foi o fim da intervenção paternalista de um governo incompetente; o controle da vida econômica passou para o Parlamento, que favoreceu uma maior liberdade do comércio interno. ‘O Antigo Regime teve de ser derrubado’, escreveu Charles Hill, ‘para que a Inglaterra pudesse conhecer esse desenvolvimento econômico mais livre, necessário para aproveitar ao máximo a riqueza nacional e para obter uma posição de liderança no mundo; para que a política, inclusive a política estrangeira, passasse para o controle daqueles que eram realmente importantes na nação; para que a sociedade se liberasse da obrigação de submeter-se às regras antiquadas, impostas por uma Igreja de Estado perseguidora [...]’. No entanto, a Revolução Inglesa foi muito menos radical que a Francesa: utilizando a expressão de Jaures em sua Histoire socialiste, ela foi ‘estreitamente burguesa e conservadora’ em comparação com a Revolução Francesa, ‘largamente burguesa e democrática’.”(SOBOUL, Albert. Posfácio. In: LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 322-323.)

A respeito dos textos citados acima, podemos dizer que no Texto 1 há uma grande preocupação com a questão em torno da temática do desenvolvimento econômico posterior à Revolução Francesa. Assim, de acordo com o primeiro texto, a Revolução Francesa pode até ter produzido mais liberdade, mas não foi capaz de gerar as condições necessárias para o desenvolvimento da indústria e do comércio em escala tal que tornasse a economia francesa uma concorrente importante para os ingleses (pioneiros da Revolução Industrial).

Já o autor do Texto 2 está bastante preocupado com a questão dos avanços sociais, da distribuição de propriedades e dos direitos políticos obtidos por cada revolução. É por isso que Albert Soboul afirma ao final do trecho citado acima que “a Revolução Inglesa foi muito menos radical que a Francesa: utilizando a expressão de Jaures em sua Histoire socialiste, ela foi ‘estreitamente burguesa e conservadora’ em comparação com a Revolução Francesa, ‘largamente burguesa e democrática’.” Na perspectiva de Soboul, a Revolução Francesa foi mais radical que a Revolução Inglesa, ao realizar grandes mudanças na França. Como os critérios adotados para a análise histórica são diferentes em cada um dos dois textos, o Texto 1 nos remete às limitações das conquistas da Revolução Francesa, ao passo que o Texto 2 aborda os avanços obtidos por tal Revolução.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Nem tão livres, nem tão iguais*

“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. O Artigo Primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cairia bem em qualquer discurso da classe política atual. Mas foi escrito há mais de dois séculos pelos revolucionários franceses de 1789. E, naquela época, os conceitos de liberdade e igualdade não eram compreendidos da mesma forma que hoje.

Muito antes do Liberté, Egalité, Fraternité – um lema a serviço da retórica política do momento – os filósofos iluministas se dedicavam a complexas discussões para dar novos sentidos à humanidade em suas relações sociais. Em seu monumental tratado Do espírito das leis (1748), o Barão de Montesquieu (1689-1755) explica que, numa sociedade regida por leis, ser livre não significa fazer tudo o que poderíamos desejar. A liberdade “só pode consistir em fazer o que se deve querer” e em “nunca ser constrangido a fazer o que não se deve querer”. Ou seja, ser “livre” diz respeito não apenas à vontade, mas também ao dever. O arbítrio – isto é, a decisão sobre o que deve ser feito – jamais se manifesta fora da alçada do direito. Em sua definição lapidar: “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.

É diferente do que pensava Aristóteles (384-322 a.C.) ao tratar da liberdade na Ética a Nicômaco: uma capacidade encontrada na alma do indivíduo. Na França do Iluminismo, o que está em questão é o estatuto político e social do homem, cuja existência depende das relações estabelecidas com os outros homens. Ser livre, nesse sentido, é ser livre relativamente aos outros, de acordo com as leis da sociedade. Ideia que permanece na sabedoria popular: “Minha liberdade termina onde começa a do outro”. Eis uma noção elementar de justiça.

Em termos históricos, a referência remonta aos primórdios da Grécia. No século V a.C., havia a distinção entre homens livres e escravos, e a divisão social da pólis determinava que somente os livres poderiam decidir acerca das leis justas. No século XVIII francês, a transição do Antigo Regime para a Primeira República foi pautada por uma releitura dessa virtude cívica dos antigos.

“A liberdade reside no poder que um ser inteligente possui para fazer o que quer, em conformidade com sua própria determinação”, afirma o verbete “Liberdade” da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (o volume da letra “L” foi publicado em 1765). A sutileza da definição está nas palavras finais: a ação do ser livre está submetida a uma regra, mesmo que esta seja a sua própria determinação. Condição que parece nos remeter ao livre-arbítrio dos cristãos (uma autodeterminação incondicional), mas tal leitura seria uma simplificação do problema. Até porque os filósofos iluministas criticavam o conceito de livre-arbítrio justamente pelo absurdo da escolha feita sem qualquer condição prévia. Seria um efeito sem causa.

Este foi o motivo pelo qual tantos pensadores preferiram adotar a perspectiva do chamado “direito natural”, defendida por teóricos desde Cícero (106-43 a.C.) na Roma antiga até Locke (1632-1704) na modernidade. Para eles, a sociedade deve ser determinada não apenas pelas leis civis (feitas pelos homens), mas também pela “lei natural”: as noções de certo e errado que já estariam inscritas na natureza antes mesmo do surgimento das sociedades. Por causa das leis naturais, na época, uma afirmação como “o homem nasce e permanece livre” não era tão incondicional como a entendemos atualmente.

Se o conceito de liberdade não exclui o de necessidade, quais leis – civis ou naturais – determinam as escolhas dos agentes livres? Para ilustrar esta questão, Voltaire, no Dicionário filosófico (1764), apresenta um curioso diálogo no verbete “Liberdade”:

“A – Uma bateria de canhões atira junto às nossas orelhas; sois livre de a ouvir ou não ouvir?

B – Sem dúvida que não posso deixar de a ouvir.

A – Desejais que esse canhão arranque vossa cabeça e a da vossa mulher e do vosso filho, que passeiam convosco?

B – Que proposta me fazeis? Não posso, enquanto estiver em perfeito juízo, desejar tal coisa; eis o que me é impossível.

A – Bom; vós ouvis necessariamente este canhão e necessariamente desejais não morrer, vós e a vossa família, de um tiro de canhão durante o passeio; não tendes o poder de não ouvir nem o poder de querer permanecer aqui.

B – É evidente.”

A conclusão do personagem A é também evidente: “Em que consiste pois a vossa liberdade”, explica para B, “senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade?”.

Para o filósofo materialista Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), o conceito de liberdade era baseado na crença iluminista do progresso da razão. Na obra Do espírito (1755), Helvétius expõe que, muito embora o homem seja uma máquina movida pelo interesse calcado em necessidades físicas (busca do prazer e fuga da dor), ainda assim poderemos falar em virtude se definirmos a liberdade como um interesse bem compreendido: um objeto escolhido pela razão e não apenas por impulso ou instinto. Decorre daí a sua máxima: “Livre não passa de um sinônimo de esclarecido”. Dito de outra forma, o interesse pode ser educado para buscar, para além da satisfação imediata do corpo, um prazer mais duradouro, que incluiria até mesmo o bem de todos com quem nos relacionamos, chamado “felicidade”.

No fim das contas, o que se desejava era a “autonomia”: o governo de si mesmo mediante leis estabelecidas pelo bom uso da razão. Este conceito aparecia tanto nos filósofos materialistas quanto nos “espiritualistas”. Rousseau, que se considerava cristão, não admitia o princípio teológico do livre-arbítrio e afirmava que “o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade”. Nesse ponto, inspirou o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a autonomia condicionava a liberdade a uma lei moral universal: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”.

Se nem mesmo a liberdade pode ser plena, já dá para imaginar que a igualdade, para os iluministas, também era relativa. Basta saber que o artigo citado da Declaração de 1789 é uma referência clara a Montesquieu e a Rousseau. O primeiro explica que a liberdade republicana consiste num amor à condição em que todos são iguais perante a Constituição: “O amor à república, numa democracia, é o amor à democracia; o amor à democracia é o amor à igualdade”. E seu contraponto é a monarquia, regime no qual não é possível falar em igualdade, onde cada um busca a superioridade em detrimento da felicidade alheia. Na monarquia não pode haver autonomia pelo fato de a lei beneficiar mais a classe que detém o poder. Isto leva a um quadro social instável, no qual as pessoas pertencentes a condições inferiores desejam se tornar senhoras das que se encontram em condições superiores.

Nem por isso Montesquieu considera que a igualdade seja ausência de hierarquias. Uma república tem a igualdade como princípio na medida em que cada um possui as mesmas vantagens para realizar seus interesses, ou ainda, sua liberdade individual. A despeito da classe social, todos podem ter as mesmas esperanças. A busca da felicidade particular leva, do ponto de vista político, à felicidade geral. O fato de haver hierarquias não é tão grave, pois há colaboração entre os “desiguais”.

Rousseau não acreditava que o império das leis era o bastante para que se instaurasse a igualdade. Para ele, a lei dos homens pode ser um instrumento de dominação por parte de governantes corruptos: “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”.

Como se vê, o quadro ideológico na França pré-revolucionária era bastante complexo. E talvez fosse de fato necessário que a revolta dos pobres infelizes eclodisse com violência para mudar o sentido das palavras liberdade e igualdade. E, com elas, a própria história.

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* Este texto foi originalmente escrito por Thomaz Kawauche e foi publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional no dia 01 de maio de 2014. Thomaz Kawauche é professor da Universidade Federal de Sergipe e autor de Religião e política em Rousseau: o conceito de religião civil (Humanitas, 2013).

Saiba mais Bibliografia

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.

DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo: Barcarolla, 2009.

NASCIMENTO, Milton Meira do & NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo: a revolução das Luzes. São Paulo: Ática, 2002.

SALINAS FORTES, Luiz Roberto. O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Sugestão de livro: "O homem que amava os cachorros" (2009), de Leonardo Padura

Muitas vezes certos personagens e acontecimentos históricos são usados por escritores quando estes elaboram uma obra de ficção. E existem obras literárias que abordam a História de maneira tão intensa que elas nos ajudam efetivamente a compreender o processo histórico.

Assim, uma excelente sugestão de leitura para os interessados em livros que misturam História e Ficção é o romance O homem que amava os cachorros, de autoria do escritor cubano Leonardo Padura. O livro foi originalmente publicado em 2009 e conta a história do líder revolucionário Leon Trotski e do seu assassino, o militante espanhol Ramón Mercader.


Leonardo Padura é pós-graduado em Literatura Hispano-Americana, romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema. O homem que amava os cachorros foi traduzido para diversos idiomas (em países como Espanha, Portugal, França, Estados Unidos e Alemanha) e recebeu vários prêmios internacionais. Para elaborar o romance, Padura dedicou cinco anos de sua vida a uma rigorosa pesquisa histórica.

Assim, Padura mistura em seu livro elementos obtidos por meio de toda a pesquisa feita com elementos que ele tirou de sua própria imaginação. O resultado é uma instigante mistura de História e Ficção que nos remete a temas como a Revolução Russa, o Stalinismo soviético, a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e os desdobramentos da Revolução Cubana.

Pode-se dizer que o livro gira principalmente em torno dos impasses vivenciados pelo comunismo ao longo do século XX. Dessa maneira, Padura explora os (des)caminhos do comunismo, indo do sucesso da Revolução Russa - momento de esperança para o proletariado internacional  - aos aspectos mais sombrios do regime de Josef Stalin e a conjuntura cubana entre o final do século XX e o início do século XXI, passando também pela Guerra Civil Espanhola e pela Segunda Guerra Mundial.

Os capítulos da obra vão compondo aos poucos as trajetórias de Leon Trotski e de Ramón Mercader. A complexidade de cada um dos personagens vai sendo desvelada aos poucos por meio de uma narrativa que procura entender como morrem as utopias. Mais do que isso, Padura procura mostrar ao leitor, às vezes de maneira bastante dura, como as pessoas que possuem ideais revolucionários muitas vezes acabam sendo derrotadas por um conjunto de forças que se revela extremamente poderoso e cruel.

O isolamento político de Trotski provocado pela ação de Stalin é descrito em páginas que levam o leitor a paisagens da União Soviética, da Turquia, da França, da Noruega e do México. Já a trajetória de Ramón Mercader, um militante espanhol que acaba se tornando o assassino de Trotski, é abordada de modo que o leitor vai aos poucos sabendo como o personagem foi envolvido em uma grande rede de mentiras, espionagens e violência. Ao final do livro, tanto Trotski quanto Mercader acabam se tornando objeto de compaixão por parte do leitor. 

Em O homem que amava os cachorros, é nítida a crítica feita por Padura ao modo como os homens desvirtuam as ideologias em nome do exercício do poder político. Nas páginas do livro, o leitor encontra comentários a respeito dos crimes cometidos pelo regime de Josef Stalin, das sofríveis condições de vida da população cubana e do modo como os governos procuram manipular a memória coletiva.

Maravilhosamente bem escrito, o romance de Padura merece ser lido não apenas porque ele nos remete a episódios marcantes do século XX, mas também porque ele nos instiga a pensar nos múltiplos pontos de vista que podem ser adotados ao se contar uma história.

Vale a pena conferir!

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NOTA: Em 2015, o escritor cubano Leonardo Padura foi entrevistado no programa de TV Roda Viva. A entrevista está disponível no site YouTube: