A Revolução Francesa enquanto um complexo
processo histórico suscitou as mais diferentes interpretações por parte dos
historiadores ao longo do tempo. Assim, cada pesquisador analisou os
acontecimentos que se desenrolaram na França no final do século XVIII fazendo
distintos “recortes” na realidade.
Muitos historiadores concordam que a Revolução
Francesa teve essencialmente um caráter burguês, embora também tenha recebido o
apoio de camponeses, da população pobre urbana e de alguns integrantes do clero
e da nobreza. Todavia, não há um consenso absoluto sobre tal caráter burguês da
Revolução.
Outro ponto que já gerou grandes discussões é a relação das ideias do Iluminismo com o desenrolar da Revolução Francesa. Segundo certos pesquisadores, os ideais da
Revolução eram baseados no Iluminismo. Na obra As origens intelectuais da
Revolução Francesa (1933), Daniel Mornet (1878-1954) defendeu a ideia
de que havia na França uma circulação das ideias iluministas que percorria
hierarquicamente o seguinte caminho: elites → burguesia → pequena burguesia →
povo. Ainda de acordo com Mornet, as ideias iluministas eram difundidas a
partir de Paris, e eram levadas da capital em direção às regiões periféricas da
França. A conclusão do autor é que o Iluminismo foi essencial para a derrubada
do absolutismo em solo francês. A interpretação feita por Mornet foi
reproduzida por diversos outros historiadores, assim, muitos pesquisadores
argumentaram que a própria Declaração dos Direitos do Homem apresentava um
conteúdo baseado nas ideias iluministas.
Mas a análise feita por Mornet não foi aceita
por todos os historiadores, pois certos pesquisadores questionaram a ideia de
que o Iluminismo levou por si só à Revolução Francesa. Um argumento comum em
tais críticas diz respeito ao fato de que, para muitos dos iluministas, a
figura de um déspota esclarecido, ou seja, o rei, é quem deveria impulsionar o
governo.
Na época do bicentenário da Revolução Francesa,
já no final do século XX, o historiador Roger Chartier (1945-) publicou o livro
As
origens culturais da Revolução Francesa, no qual ele inverteu a forma
da análise feita por Mornet. Para Chartier, não foi o Iluminismo que gerou a
Revolução Francesa, mas o contrário, ou seja, o processo revolucionário é que
gerou o Iluminismo, pois, de acordo com o autor, os revolucionários é que selecionaram
alguns pensadores tais como Voltaire, Rousseau, Mably e Raynal, para justificar
e legitimar a Revolução, no intuito de demonstrar que eles – os revolucionários
de 1789 – estariam apenas colocando em prática as ideias de tais filósofos “das
Luzes”. Ademais, Chartier ainda questionou em sua obra a capacidade de livros
terem provocado a Revolução Francesa, argumentando que os livros de pensadores
iluministas eram lidos tanto por apoiadores quanto por opositores do rei da
França, ou seja, tais livros não foram uma condição sine qua non para o início da Revolução Francesa, uma vez que eles
eram lidos e interpretados de distintas formas pelos seus diferentes leitores.
Seguindo uma linha de raciocínio próxima à de
Roger Chartier, a historiadora francesa contemporânea Joëlle Chevé também
afirmou que os revolucionários de 1789 na França precisavam de um suporte teórico
para fundamentar e legitimar as suas ações, e que o Iluminismo foi escolhido
por eles para isso. Ademais, Chevé também salientou em distintas pesquisas que muitos
dos chamados “enciclopedistas”, ou seja, os pensadores ligados à produção dos
volumes da Enciclopédia (obra coletiva organizada por Denis Diderot e Jean
le Rond d’Alembert) não eram favoráveis à ideia de revolução, uma vez que eles
se consideravam os protótipos do novo gênero humano. Tal concepção elitista
estava afastada da preocupação com a questão da igualdade universal. Com tais
argumentos, a autora defendeu a ideia de que não há razão para afirmar que o
Iluminismo foi preponderante no processo que levou à Revolução Francesa. De
acordo com a pesquisadora, a própria falência do Estado Absolutista e o enfraquecimento das instituições já são suficientes para explicar o fim do Antigo
Regime na França.
Quanto ao caráter burguês da Revolução Francesa,
este é realmente um tema que gerou distintas interpretações por parte dos estudiosos. O
norte-americano Robert Darnton (1939-) argumentou que a oposição entre a nobreza
e a burguesia naquele contexto histórico não era tão clara. Assim, a partir de
tal perspectiva, é importante lembrarmos que muitos nobres começaram a fazer
negócios no campo do comércio, aburguesando-se, enquanto que houve casos de
burgueses que estavam interessados em garantir privilégios e até mesmo em tornar-se
nobres, comprando inclusive títulos de nobreza para isso.
Por sua vez, o historiador francês François
Furet (1927-1997), autor da obra Pensando a Revolução Francesa (1978)
criticou a caracterização da referida Revolução como uma revolução burguesa porque, segundo ele, houve na época várias
revoluções em andamento ao mesmo tempo, e não apenas uma, já que as classes
populares urbanas e os camponeses fizeram as suas próprias revoluções. Os
camponeses, por exemplo, adotaram em determinados momentos uma postura até mesmo reacionária,
defendendo a volta de certas garantias feudais de que gozavam no passado.
Ademais, segundo Furet, a aristocracia esclarecida, que protegeu os
iluministas, talvez tenha tido um papel mais importante que o da burguesia, que
se mostrou bastante conservadora em diversos momentos da Revolução Francesa.
Cabe mencionar ainda a análise feita
pelo historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) a respeito da Revolução
Francesa que está presente em sua obra A Era das Revoluções (1962). Para
ele, embora a Revolução não tenha sido o produto de um único partido, houve um
consenso de ideias entre a burguesia e o liberalismo iluminista. Os burgueses
tiveram, de acordo com Hobsbawm, um papel fundamental na Revolução, uma vez que
tinham uma forte presença política e intelectual junto ao Terceiro Estado,
tendo a burguesia sido capaz – contando para isto com o apoio dos camponeses e
dos trabalhadores – de fazer o rei convocar os Estados Gerais.
Como se vê, são muitas as interpretações a
respeito da Revolução Francesa. Não se trata de escolhermos a visão mais “correta”
acerca de tal acontecimento histórico, mas de conhecermos os diferentes pontos
de vista interpretativos sobre o assunto, de modo que possamos compreender a
grande complexidade que envolveu tal processo. O importante é percebermos que o
tipo da interpretação historiográfica está relacionado aos critérios que cada
historiador adota para analisar determinado processo histórico. No intuito de
deixarmos mais clara esta nossa última observação, façamos agora a leitura de
dois trechos extraídos dos textos de diferentes historiadores que se debruçaram
sobre o tema da Revolução Francesa. Vejamos:
Texto 1 - “Se não é certo que a França estivesse prestes a alcançar a Inglaterra em 1789, o balanço econômico do período revolucionário é, ainda assim, negativo, incluindo, entre outros, fenômenos de desindustrialização e desastre do comércio marítimo e colonial. A recuperação napoleônica foi insuficiente: em 1815, expandira-se a distância entre a França e uma Inglaterra definitivamente dona dos mares e dominante em todos os circuitos comerciais. A revolução jurídica contribuiu para liberar – às custas de uma miséria notoriamente maior para os mais desfavorecidos – certas forças antigamente obstruídas; porém, não se pode considerar modernizador o desenvolvimento considerável da pequena propriedade agrícola induzido pela Revolução. Ademais, o período revolucionário e imperial parece ter enraizado comportamentos pouco favoráveis ao desenvolvimento econômico, a começar pelo gosto excessivo das elites pelas carreiras na administração pública e do exército.”(BLUCHE, Frédéric [et al.]. Revolução Francesa. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 141.)
Texto 2 - “Levando em consideração seus resultados gerais, a Revolução Inglesa desempenhou na história da Inglaterra um papel equivalente ao da Revolução Francesa na história da França. Ela não só substituiu uma poderosa monarquia absoluta por um governo representativo, porém não democrático, terminando com o domínio exclusivo da Igreja de Estado perseguidora, como também preparou o caminho para o desenvolvimento do capitalismo. Segundo um dos seus mais recentes historiadores, ‘ela colocou um ponto final na Idade Média’. Os últimos vestígios do feudalismo foram varridos, os arrendamentos feudais abolidos, assegurando à classe dos proprietários fundiários a absoluta posse dos seus bens. O confisco e a venda dos bens da Igreja, da Coroa e dos partidários do rei romperam as tradicionais relações feudais no campo e aceleraram a acumulação de capital. As corporações perderam toda importância econômica; os monopólios comerciais, financeiros e industriais foram abolidos. Foi o fim da intervenção paternalista de um governo incompetente; o controle da vida econômica passou para o Parlamento, que favoreceu uma maior liberdade do comércio interno. ‘O Antigo Regime teve de ser derrubado’, escreveu Charles Hill, ‘para que a Inglaterra pudesse conhecer esse desenvolvimento econômico mais livre, necessário para aproveitar ao máximo a riqueza nacional e para obter uma posição de liderança no mundo; para que a política, inclusive a política estrangeira, passasse para o controle daqueles que eram realmente importantes na nação; para que a sociedade se liberasse da obrigação de submeter-se às regras antiquadas, impostas por uma Igreja de Estado perseguidora [...]’. No entanto, a Revolução Inglesa foi muito menos radical que a Francesa: utilizando a expressão de Jaures em sua Histoire socialiste, ela foi ‘estreitamente burguesa e conservadora’ em comparação com a Revolução Francesa, ‘largamente burguesa e democrática’.”(SOBOUL, Albert. Posfácio. In: LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 322-323.)
A respeito dos textos citados acima, podemos
dizer que no Texto 1 há uma grande
preocupação com a questão em torno da temática do desenvolvimento econômico
posterior à Revolução Francesa. Assim, de acordo com o primeiro texto, a
Revolução Francesa pode até ter produzido mais liberdade, mas não foi capaz de
gerar as condições necessárias para o desenvolvimento da indústria e do
comércio em escala tal que tornasse a economia francesa uma concorrente importante
para os ingleses (pioneiros da Revolução Industrial).
Já o autor do Texto 2 está bastante preocupado com a questão dos avanços sociais,
da distribuição de propriedades e dos direitos políticos obtidos por cada
revolução. É por isso que Albert Soboul afirma ao final do trecho citado acima
que “a Revolução Inglesa foi muito menos radical que a Francesa: utilizando a
expressão de Jaures em sua Histoire
socialiste, ela foi ‘estreitamente burguesa e conservadora’ em comparação
com a Revolução Francesa, ‘largamente burguesa e democrática’.” Na perspectiva
de Soboul, a Revolução Francesa foi mais radical que a Revolução Inglesa, ao
realizar grandes mudanças na França. Como os critérios adotados para a análise
histórica são diferentes em cada um dos dois textos, o Texto 1 nos remete às limitações
das conquistas da Revolução Francesa, ao passo que o Texto 2 aborda os avanços
obtidos por tal Revolução.