Jacques Soustelle (1912-1990), no livro “A vida cotidiana – Os astecas na véspera da conquista espanhola” (Companhia das Letras, 1990), nos apresenta elementos importantes para pensarmos o “olhar” que se lança sobre culturas distintas da nossa.
Segundo o autor, os astecas se inserem numa temporalidade em que há uma verdadeira simbiose entre homem e natureza. Além de os signos terem uma importância fundamental, os calendários cumpriam a função de determinar o destino dos homens diante dos deuses e do Universo. É nesta perspectiva que noite e dia, morte e vida, polos teoricamente opostos, não se excluem. Ao mesmo tempo, é nesse universo que se insere a necessidade dos sacrifícios humanos. Nessa cultura, estes eram vistos como extremamente essenciais, já que era um modo de agradar aos deuses e manter a estabilidade do mundo.
É certo que, ao se depararem com a prática dos sacrifícios humanos, os espanhóis, dispondo de referenciais históricos e culturais distintos dos astecas, caracterizaram essa prática como “demoníaca”, legitimando, assim, todas as formas necessárias para extirpá-la. A problemática que Soustelle levanta é que esses espanhóis, herdeiros da Inquisição, estavam habituados a queimar homens e mulheres vivos na fogueira, mas, ainda assim, não deixaram de olhar com “horror” para a prática dos mexicas. Consequentemente, isso nos leva a pensar que a noção de horror é algo que também se constitui historicamente.
Esse exercício reflexivo nos permite pensar as duas culturas totalmente distintas em questão: a dos astecas e a dos espanhóis, e o resultado de seu “encontro” no século 16. Mas, ao mesmo tempo, nos permite, ainda que considerando a distância geográfica e temporal, olhar para a temporalidade em que estamos inseridos hoje.
Nós, que estamos no século 21, herdeiros de vários processos como as duas grandes guerras mundiais, com todo o seu teor de catástrofe presente no século anterior, o que denominamos horror? Infelizmente, a fome, a miséria, a corrupção política, as mais variadas formas de intolerância etc. estão tão presentes em nosso cotidiano que perderam seu teor de tragicidade e, banalizados, já se tornaram parte do nosso presente.
(*) Texto escrito por Maria Abadia Cardoso, doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG - Campus de Goiânia) e integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (Nehac/UFU). Este texto foi originalmente publicado pela autora no Jornal Correio de Uberlândia (edição de 30 de agosto de 2013).