Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

terça-feira, 30 de setembro de 2014

A (re)constituição de um olhar de “horror”(*)

Jacques Soustelle (1912-1990), no livro “A vida cotidiana – Os astecas na véspera da conquista espanhola” (Companhia das Letras, 1990), nos apresenta elementos importantes para pensarmos o “olhar” que se lança sobre culturas distintas da nossa.
Segundo o autor, os astecas se inserem numa temporalidade em que há uma verdadeira simbiose entre homem e natureza. Além de os signos terem uma importância fundamental, os calendários cumpriam a função de determinar o destino dos homens diante dos deuses e do Universo. É nesta perspectiva que noite e dia, morte e vida, polos teoricamente opostos, não se excluem. Ao mesmo tempo, é nesse universo que se insere a necessidade dos sacrifícios humanos. Nessa cultura, estes eram vistos como extremamente essenciais, já que era um modo de agradar aos deuses e manter a estabilidade do mundo.
É certo que, ao se depararem com a prática dos sacrifícios humanos, os espanhóis, dispondo de referenciais históricos e culturais distintos dos astecas, caracterizaram essa prática como “demoníaca”, legitimando, assim, todas as formas necessárias para extirpá-la. A problemática que Soustelle levanta é que esses espanhóis, herdeiros da Inquisição, estavam habituados a queimar homens e mulheres vivos na fogueira, mas, ainda assim, não deixaram de olhar com “horror” para a prática dos mexicas. Consequentemente, isso nos leva a pensar que a noção de horror é algo que também se constitui historicamente.
Esse exercício reflexivo nos permite pensar as duas culturas totalmente distintas em questão: a dos astecas e a dos espanhóis, e o resultado de seu “encontro” no século 16. Mas, ao mesmo tempo, nos permite, ainda que considerando a distância geográfica e temporal, olhar para a temporalidade em que estamos inseridos hoje.


Nós, que estamos no século 21, herdeiros de vários processos como as duas grandes guerras mundiais, com todo o seu teor de catástrofe presente no século anterior, o que denominamos horror? Infelizmente, a fome, a miséria, a corrupção política, as mais variadas formas de intolerância etc. estão tão presentes em nosso cotidiano que perderam seu teor de tragicidade e, banalizados, já se tornaram parte do nosso presente.


(*) Texto escrito por Maria Abadia Cardoso, doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG - Campus de Goiânia) e integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (Nehac/UFU). Este texto foi originalmente publicado pela autora no Jornal Correio de Uberlândia (edição de 30 de agosto de 2013).

A América Pré-Colombiana: Maias, Astecas e Incas

Quando os europeus chegaram ao continente americano a partir do final do século XV encontraram nestas terras vários povos que já habitavam o lugar. Apesar de existirem vários grupos humanos com suas culturas específicas, os europeus chamaram a todos de “índios”. O encontro entre os europeus e os povos americanos nem sempre ocorreu de maneira amistosa, e o que se viu nos séculos seguintes foi um processo de colonização da América por espanhóis, portugueses, ingleses, franceses e holandeses no qual as populações que já viviam no continente antes da chegada dos homens do Velho Mundo sofreram com a exploração e com o genocídio impostos pelos homens da Europa.

Cada um dos povos da chamada “América pré-colombiana” tinha a sua história, os seus costumes e os seus hábitos específicos, e algumas daquelas sociedades eram organizadas de maneira extremamente complexa. Notáveis exemplos disso são os povos maias, astecas e incas, portadores de uma cultura que não deixou de surpreender os europeus que chegavam ao Novo Mundo a partir do final do século XV. Nas linhas abaixo, examinaremos alguns aspectos de tais grupos humanos.


POVOS DA MESOAMÉRICA: MAIAS E ASTECAS

A expressão “Mittel America” cunhada por Eduard Seler (1849-1922) e outros estudiosos alemães serve para designar a região do México central e meridional mais os territórios do norte da América Central. Todavia, foi Paul Kirchhoff que utilizou, em 1943, o termo “Mesoamérica” para falar da mesma região, embora tal conceito não tivesse apenas um sentido geográfico, mas englobasse também as culturas e civilizações que existiram naquela área. “Mesoamérica”, portanto, é uma palavra que se refere à região da América Central, cercada por água dos dois lados e portadora de uma grande diversidade ecológica e geográfica, com grandes variações de clima, vegetação e vida animal.

Se por volta de 9000 a.C. a Mesoamérica era habitada por homens que caçavam e coletavam alimentos, foi perto de 5000 a.C. que a agricultura começou a ser praticada naquela região com o cultivo de abóbora, pimenta malagueta, feijão e milho. A cerâmica, por sua vez, surgiu entre os homens mesoamericanos perto de 2300 a.C. e o que se viu depois disso foi um processo de diferenciação étnica e linguística entre os vários grupos humanos do lugar.

Entre esses grupos podemos destacar os chamados olmecas, que habitavam a região de La Venta (próxima do Golfo do México). Eles não só faziam esculturas de pedra, como também erguiam monumentos. Alguns estudiosos chegam a afirmar que os olmecas desenvolveram um protourbanismo com grandes construções para fins religiosos e a existência de praças públicas para a realização de cerimônias ao ar livre. Havia também um divisão do trabalho, pois enquanto uns se dedicavam à agricultura, outros já se ocupavam das mais variadas artes e ofícios (esculturas, ornamentos, máscaras, colares, etc.), isso sem falar naqueles que realizavam outras tarefas, tais como a defesa do grupo, o comércio, o culto aos deuses e o governo (caso dos chefes religiosos). Os olmecas acreditavam na existência de um Deus-jaguar onipresente, e em referência a tal divindade faziam máscaras de jaguar. Estudos revelaram também a existência de monumentos que mostram pássaros, serpentes e seres humanos construídos pelos olmecas. No que concerne à questão da morte, os olmecas realizavam oferendas durante os funerais, cultuavam os mortos e acreditavam na vida após a morte. A influência olmeca pode ser vista em outras regiões do México, como nos territórios dos maias, por exemplo. Contudo, apesar de alguns aspectos da cultura olmeca serem surpreendentes, eles possuíam algumas limitações como a ausência do uso da roda, a inexistência de metalurgia e a falta de animais domesticados como o cavalo e o gado, embora existissem cachorros que até eram sacrificados junto a seus donos mortos.

A sociedade que vivia em Teotihuacán – a “cidade dos deuses” – também merece destaque. Este povo erguia centros religiosos, templos, construções diversas, escolas e bairros com residências, além da pavimentação de ruas e da construção de um sistema de drenagem. O apogeu de Teotihuacán ocorreu por volta dos séculos V-VI d.C., quando na cidade viviam cerca de 50 mil habitantes. Nessa sociedade também havia a divisão do trabalho, o “exército” era eficiente, a agricultura extensiva e o comércio bastante organizado. No que concerne ao campo religioso, existia o culto a vários deuses, entre os quais se destacavam Tlaloc (o Senhor das águas), Chalchiuhtlicue (a Senhora das águas) e Quetzalcóatl (a Serpente emplumada). A língua falada em Teotihuacán era o nahuat.

Os zapotecas, por sua vez, ocuparam a região do Monte Albán (Oaxaca central) e sua cultura era riquíssima, com complexas formas de escrita, com datas, nomes de lugar e hieróglifos. Os zapotecas também se organizavam em torno de um núcleo urbano. Como se vê, existiam diferentes povos na Mesoamérica, cada um com sua particularidade. Dois outros povos mesoamericanos merecem ainda uma análise detalhada: os maias e os astecas.

Os maias ocuparam a região da península de Yucatán, bem como os territórios correspondentes aos atuais estados mexicanos de Tabasco e Chiapas e dos atuais Belize, El Salvador, Guatemala e Honduras. Inicialmente, esses povos se deslocavam pela selva buscando alimentos por meio da caça, da pesca e da coleta. Com o tempo, desenvolveram-se vários centros maias que eram espalhados – Tikal, Copán, Uxmal e Chichén-Itzá – e muito já se discutiu sobre a sua natureza urbana. De qualquer forma, nos territórios maias não existiam apenas santuários para os deuses e palácios para os líderes religiosos, mas também bairros residenciais para o povo. As construções eram grandes e sofisticadas, feitas a partir do deslocamento de grandes blocos de pedra e dos conhecimentos de engenharia e cálculo. Os templos religiosos geralmente tinham a forma de pirâmides, e foi em torno desses centros cerimoniais que muitas cidades maias surgiram. Cada um dos diversos centros maias tinha governo, leis e costumes próprios, apenas em casos de guerras contra um inimigo comum as cidades maias se associavam em espécies de “confederações” ou “reinos”. Já a sociedade maia era dividida em dois grandes estratos sociais: o povo comum que se dedicava à agricultura e a serviços pessoais, e o grupo dominante formado por governantes, sacerdotes e guerreiros de alta posição. A maioria da população trabalhava no cultivo de feijão, abóbora, algodão, cacau, abacate e milho. Os maias também desenvolveram uma sofisticada cultura, com calendários, arquitetura, escultura, pinturas murais e textos hieroglíficos (graças à atuação de sábios e sacerdotes).

O declínio dos povos maias, bem como dos zapotecas e teotihuacanos, ocorreu a partir do período compreendido entre os anos 650 e 950 d.C. e os estudiosos já especularam muito sobre as razões de tal processo. Epidemias, secas, inundações, terremotos, furacões, destruição por fogo, conflitos internos e invasões externas são causas normalmente apontadas para explicar o abandono das cidades daqueles povos. Todavia, é preciso dizer que a cultura de tais povos não morreu, mas foi capaz de sobreviver até mesmo à conquista espanhola. De fato, tal cultura deixou um importante legado para a região: o urbanismo. Naquelas sociedades mesoamericanas a cidade era importantíssima, com o seu núcleo político-religioso (templos e palácios) interligado. Havia as escolas comunais, a praça do mercado (local para a realização do comércio e espaço para a sociabilidade, proporcionando um lugar para os encontros), as habitações dos plebeus que eram espalhadas e circundavam a parte central da cidade. As casas tinham pedaços de terra para o plantio de legumes e plantas, o que fazia com que aquelas cidades parecessem uma mistura de florestas e jardins. Um notável exemplo disso será a metrópole asteca Tenochtitlán-México.

Antes de falarmos dos astecas, cabe mencionar ainda outros povos que habitaram a Mesoamérica: coras, huichols, tepehuanos, cahitas, pimas, índios pueblos, toltecas, mixtecas (estes se destacaram nas artes e no trabalho com metais como ouro, prata e cobre) e chichimecas. Esses vários povos eram marcados por trocas culturais entre si e mostram a notável diversidade que existia na região.

Falemos agora dos astecas, também chamados de mexicas. O primeiro aspecto a ser destacado da cultura desse povo é o fato de que os astecas procuraram forjar uma imagem de suas origens, no intuito de construir um sentimento de identidade coletiva e elaborar uma memória a respeito do próprio passado. Segundo esses relatos, os astecas teriam vindo de Aztlan, onde eram subordinados aos tlatoque (governantes) e aos pipiltin (nobres) locais. Eles, os astecas, chamavam a si mesmos de macehualtin (plebeus, servos) e diziam que tinham que pagar tributos e trabalhar para os tlatoque. Os astecas teriam deixado então a região de Aztlan em busca de um outro lugar para viver (segundo uma profecia que teria sido feita por um sacerdote, os astecas encontrariam um lugar a partir do qual dominariam outros povos). Tal história de peregrinação tornou-se importante para os astecas, e as lendas dizem que a caminhada foi difícil. É preciso dizer que esses relatos foram transmitidos de geração em geração não apenas de maneira oral, mas também por meio de livros e poemas. É curioso constatar que, segundo o pesquisador Miguel León-Portilla, existem indícios de que os mexicas se libertaram do domínio dos tecpanecas de Azcapotzalco e construíram depois disso o seu próprio “império”, fato que nos faz lembrar a própria lenda elaborada pelos astecas para explicar suas origens.

A organização política dos mexicas de Tenochtitlán, cidade fundada em 1325, foi comparada por cronistas espanhóis (e por historiadores do século XIX como Prescott, Bancroft, Ramírez e Orozco y Berra) aos reinos feudais da Europa. Assim, termos como “rei”, “príncipe”, “magistrado”, “plebeu”, “escravo”, etc. foram e continuam sendo usados para descrever a sociedade asteca. Tal postura foi revista por pesquisadores como Lewis H. Morgan (autor de “Ancient Society”) e Adolph F. Bandelier, que defenderam a tese segundo a qual não havia classes sociais diferenciadas e nem formas de organização como “reinos” entre os mexicas, pois o que havia entre os astecas eram grupos vinculados por sangue.

Já outros estudiosos como Manuel M. Moreno, Arturo Monzón, Paul Kirchhoff, Alfonso Caso e Friedrich Katz argumentaram que os macehualtin agrupados em calpulli (“grande casa”, pessoas da mesma casa) tinham uma posição socioeconômica muito diferente da dos pipiltin e eram sim classes sociais diferentes, já que só os pipiltin poderiam ter a propriedade privada da terra.

Segundo Miguel León-Portilla, os pipiltin da sociedade asteca não eram um grupo totalmente homogêneo, uma vez que havia divisões hierárquicas entre eles: existiam os descendentes dos que tinham sido governantes supremos, os que não eram descendentes desses governantes, os que tinham realizado grandes feitos em combate e, por fim, os filhos daqueles que exerciam funções administrativas.

O governante supremo dos astecas era o huey tlatoani, visto como o representante da divindade na terra, comandante-chefe do exército, dignitário religioso e juiz supremo. Todavia, não era visto nem como encarnação nem como filho de um deus. Era eleito por um pequeno número de pipiltin, que decidiam de maneira unânime. O cargo de governante era complementado por um assistente e conselheiro, o cihuacoatl, que deveria substituir o governante em caso de sua ausência ou morte, bem como presidir as eleições e o tribunal supremo.

Outras autoridades merecem destaque na organização social asteca: Senhor da casa das lanças, comandante dos homens, juízes principais, sumos sacerdotes, guardiões do tesouro da nação. Todos esses dignitários participavam do supremo conselho chefiado pelo próprio huey tlatoani.

Os pipiltin (nobres) ocupavam cargos importantes na administração pública e seus filhos recebiam uma educação especial e condizente com sua posição social. Levavam uma vida regrada e sem vícios, onde a bebida, o luxo e a ostentação eram reprovados e punidos com rigor. A posse de faixas de terra estava relacionada à ocupação de determinado cargo ou função (mas como certos cargos eram ocupados por pessoas da mesma família por gerações, certas faixas de terra acabavam transmitidas hereditariamente). Os pipiltin se viam como superiores aos macehualtin (servos, plebeus), pois acreditavam que, no passado, eles é que teriam libertado os macehualtin e por isso estes deviam-lhes obediência.

A cidade de Tenochtitlán possuía obras hidráulicas, diques, aquedutos e caminhos elevados sobre os seus terrenos pantanosos. Havia também a oferenda de sangue para restaurar a energia divina. No culto aos deuses, portanto, os astecas praticavam o sacrifício humano. A metrópole asteca era embelezada por técnicas de urbanização, havia o comércio de longa distância, artes e ofícios diversos e um sistema escolar. Tenochtitlán dominava outras cidades, e recebia tributos destas.

Os calpulli eram as comunidades organizadas a partir das “casas”, e havia tendências endogâmicas e muitos graus de parentesco no interior deles. Os membros dos calpulli é que formavam os macehualtin. Apesar de existir o uso comum da terra pelos integrantes do calpulli, o proprietário final da terra era sempre um chefe local (um “pipiltin”). Os macehualtin praticavam uma economia de subsistência dentro do seu calpulli, deviam obediência às autoridades, pagavam tributos, serviam ao exército e executavam serviços para o “Estado”, tais como a construção de obras públicas e o transporte de mercadorias. Os macehualtin tinham, portanto, um modo de vida bem diferente daquele dos pipiltin, havendo diferenças econômicas e sociais entre os dois grupos.

A economia asteca era marcada por um divisão do trabalho pelo sexo. Os homens se dedicavam a tarefas agrícolas e à produção especializada. As mulheres se ocupavam de tarefas domésticas como a fabricação das massas de “tortillas”, da fiação e da tecelagem. Os astecas praticavam a agricultura, destacando-se o cultivo de milho, feijão, abóbora, pimenta malagueta, flores e plantas medicinais. Os mexicas praticavam também a criação de perus e exploravam alguns metais como ouro, prata, cobre e estanho, além de minerais e pedras preciosas. Eles desenvolveram utensílios de pedra como o martelo e a faca.

No que diz respeito aos aspectos da religião e do modo de ver o mundo, os astecas acreditavam na existência de “eras” ao longo da história, vista por eles como um processo cíclico onde cada era começava a partir da destruição da anterior. Segundo sua crença, eles estariam na “quinta era” à época da conquista espanhola. Acreditavam em um “pai” onicriador, Ometeotl, que era uma espécie de “deus dual”, mãe e pai a um só tempo. Os quatro filhos de Ometeotl, os “espelhos fumantes”, foram responsáveis pelas destruições das quatro eras anteriores, e os sacrifícios humanos, por meio do derramamento de sangue, praticados pelos astecas tinham como finalidade preservar/prolongar a quinta era, mantendo a vida do sol. Os sacerdotes tinham por função cultuar os deuses e interpretar suas vontades, acumulando riquezas em terras e joias doadas pelo soberano ou por particulares.

Os mexicas exerceram sua influência e seu domínio sobre outros povos mesoamericanos, mas não sobre todos. Havia uma heterogeneidade cultural na Mesoamérica e os espanhóis acabariam manipulando os povos rivais dos astecas para conquistar o território.

O pesquisador Jacques Soustelle elaborou um notável estudo da sociedade asteca no livro “Os astecas na véspera da conquista espanhola”. No livro, Soustelle aponta para o fato de que o principal elemento de riqueza entre os astecas era a terra, que pertencia a toda a coletividade. Cada um recebia individualmente o direito de trabalhar uma parcela da terra, devendo cultivá-la e pagar tributos a Tenochtitlán. Tais tributos eram pagos com itens agrícolas (milho, feijão, pimenta), tecidos, materiais de construção, móveis, louça, ouro, incenso, borracha, etc.

O soberano e os dignitários recebiam muitos tributos, mas os seus cargos exigiam muitos gastos também. O soberano, por exemplo, tinha que distribuir comida e bebida à população durante o período de pouca produção de alimentos. Os comerciantes, por sua vez, não tinham a obrigação de gastar algo por causa de sua função na sociedade e eles raramente ostentavam os seus bens, de modo que sua fortuna era estritamente privada.

O soberano era chamado de “tlatoani” porque era visto como aquele que fala (o verbo “tlatoar” significa “falar”). Segundo Jacques Soustelle, os astecas viam o mundo como um lugar que estava sob constante ameaça. O sol teria surgido e sido colocado em movimento a partir do sacrifício dos deuses, de modo que o sangue era identificado intimamente com o próprio processo da vida. É nesse sentido que os sacrifícios humanos nos quais arrancava-se o coração e a cabeça eram vistos como necessários para manter o sol em movimento e prolongar a duração da “quinta era” que os astecas acreditavam estar vivendo quando da chegada dos europeus. Quando chegaram àquela região, os espanhóis viram os sacrifícios com horror, apesar de serem acostumados na Europa a mandar pessoas para a fogueira no contexto da Inquisição. Como o próprio Soustelle diz: “cada cultura tem sua noção particular do que é cruel e do que não o é”.

O calendário asteca previa não só fenômenos naturais, mas também destinos humanos. Os 365 dias do ano solar eram divididos em 18 meses de 20 dias cada um, somando-se a eles um período de 5 dias. O “século” asteca tinha 52 anos, havendo dias bons e dias ruins que marcavam os presságios. Segundo Soustelle, a visão asteca do universo dava pouco espaço ao homem, que era dominado por deuses, astros e pelo destino definido pela data de seu nascimento. Soustelle afirma que os astecas tinham um pessimismo ativo, como demonstra o culto aos deuses e os sacrifícios humanos (eles acreditavam que o mundo iria acabar de qualquer forma, mas faziam de tudo para adiar isso).

A religião asteca era complexa e também aberta aos deuses de outros povos, inclusive os conquistados, traço esse, aliás, que a diferenciava da religião dos espanhóis, que buscava sempre a exclusividade. A religião asteca era um elemento importante de sua cultura porque permitia àquele povo interpretar o mundo, dando regras para as ações cotidianas e forma à própria existência. Não é por acaso que Jacques Soustelle afirma o seguinte em seu livro: “Tal como uma poderosa fundação, ela [a religião asteca] sustentava todo o edifício da civilização mexicana. Assim, não é de admirar que, destruída essa fundação pelas mãos dos invasores [espanhóis], o edifício inteiro tenha ruído”.


AS SOCIEDADES ANDINAS: OS INCAS

O conhecimento sobre os grupos humanos que habitavam a região da Cordilheira dos Andes, na América do Sul, é bastante limitado. O pesquisador John Murra chegou a falar das poucas fontes existentes, das limitações e da falta de interesse por parte de arqueólogos e etnólogos de países como Bolívia, Peru, Equador, Chile e Argentina. De fato, muitos documentos históricos ainda usados nos estudos dessas sociedades são relatos de europeus produzidos na época da conquista do território.

A paisagem andina é marcada por alguns aspectos importantes: montanhas altas, noites frias, dias quentes, vales profundos, desertos secos, grandes distâncias. No contexto pré-colombiano a região era portadora de notáveis riquezas, tais como metais preciosos, grande número de habitantes, edificações, estradas, metalurgia, irrigação e produção têxtil. A produção de roupas e tecidos era a mais importante forma de arte andina. Os tecidos tinham usos políticos, rituais e até militares.

Os incas teriam chegado ao interior da Cordilheira dos Andes por volta dos séculos XII-XIII, vivendo como camponeses e pastores fundaram a cidade de Cuzco. Os domínios incas foram ampliados por meio de alianças ou de guerras contra outros povos. Em tal processo os incas assimilaram elementos de outras culturas, incluindo o quéchua, a língua que mais tarde espalhariam pelos Andes.

Elemento importante da cultura incaica era o chamado padrão arquipélago de ocupação do território. A pessoa se afastava de sua comunidade de origem e ia cultivar uma faixa de terra em um lugar a certa distância, porém continuava ligada à sua comunidade (era o chamado “duplo domicílio”). Dessa maneira, uma única comunidade tinha acesso a regiões diferentes por meio dessas povoações periféricas. Os “colonos” saíam de suas comunidades para plantar milho, extrair sal, etc. Esses colonos eram chamados de mitmac. Quando a distância de seu povoado original era pequena, os vínculos eram mantidos mais facilmente. Se a distância fosse muito grande, caravanas eram organizadas para manter os colonos integrados (tais caravanas levavam e traziam produtos). De certo modo, a dominação espanhola seguiu esse padrão, pois os colonos espanhóis que chegavam àquela região não recebiam o domínio sobre um pedaço específico de terra, mas sobre a encomienda, ou seja, o conjunto das pessoas (índios) que habitavam certas áreas.

É preciso dizer que esse padrão de ocupação do território por meio de núcleos populacionais espalhados é anterior ao próprio Tahuantinsuyo - o “Estado inca” –, que o adotou e o ampliou. Como o território sob o domínio inca era grande, havia mitmacs que viviam muito longe do núcleo central inca. Os mitmacs não faziam apenas trabalhos agrícolas, mas também militares, vigiando as áreas de fronteira.

Naquelas regiões montanhosas, os incas adotaram a irrigação sistemática e praticavam a agricultura em terraços construídos na forma de escada. Nos degraus mais altos, cultivava-se espécies vegetais resistentes ao frio, como a batata; nos do meio, milho, abóbora e feijão; nos mais baixos, árvores frutíferas. As colheitas eram variadas e fartas o ano todo. Havia também a criação de lhamas, animais de carga com grande resistência, além de alpacas e guanacos, dos quais obtinham lã e leite.

Ao longo do tempo foram variadas as sociedades que ocuparam a região dos Andes. Entre 1000 e 300 a.C. ocorreu o apogeu de Chavín (templo localizado a 3135 metros de altitude) que influenciou outras colônias. Entre 500 a.C. e 1000 d.C. foi marcante a presença de Tiahuanaco (perto do lago Titicaca) e Huari (no Peru), que foram grandes colônias urbanas. Na grande heterogeneidade étnica e cultural das populações andinas – lupacas, aimarás, uros, etc. – cada povo andino costumava ter dois líderes políticos e os laços de família (“hatha” = linhagem, “ayllu” em quéchua) eram muito importantes. As terras de cada ayllu – conjunto de famílias aparentadas – eram divididas em três partes: uma pertencia ao chefe do Estado incaico, outra era dos deuses (dos sacerdotes) e a última era dos camponeses que ali viviam. O altiplano andino tinha uma divisão dual: havia a urcusuyo (metade montanhesa) e a umasuyo (metade aquática).

As terras incas possuíam vários quilômetros de estradas que ligavam as diferentes regiões. Neste cenário, a cidade de Cuzco era o centro administrativo e cerimonial do Tahuantinsuyo (reino inca), onde havia rituais nos quais peças de roupas eram sacrificadas e sacerdotes faziam jejum. Cuzco ficava justamente na encruzilhada de várias estradas reais (que tinham 20000 Km de extensão). Os incas chegaram a dominar diversos povos e faziam censos para contar o número de habitantes da população (solteiros não entravam na conta). As comunidades deviam enviar uma quantidade de pessoas para prestar serviços diversos (construções, agricultura, etc.) para o Tahuantinsuyo, os chamados trabalhos de mita. É preciso dizer que o domínio inca foi contestado por outros povos, que organizaram rebeliões às quais o Tahuantinsuyo reagia.


No topo da sociedade incaica estava o imperador – o “filho do Sol” –, reverenciado e respeitado por todos. Abaixo dele, a nobreza, os sacerdotes e os chefes militares. Entre os grupos intermediários estavam os contabilistas, os projetistas, os guerreiros e os artesãos, grupos que eram ajudados pelo governo. A maioria da população era composta por camponeses, que viviam em aldeias rodeadas por campos de cultivo e de pastoreio e eram oprimidos por diferentes tributos. A principal cerimônia da religião inca era o culto ao deus Sol, e a língua oficial era o quéchua.


BIBLIOGRAFIA:

LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Mesoamérica antes de 1519. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina Colonial. Vol. 1. Tradução de Maria Clara Cescato. 2. ed. São Paulo: EDUSP; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998, p. 25-61.

MURRA, John. As sociedades andinas anteriores a 1532. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina Colonial. Vol. 1. Tradução de Maria Clara Cescato. 2. ed. São Paulo: EDUSP; Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 1998, p. 63-99.

SOUSTELLE, Jacques. Os astecas na véspera da conquista espanhola. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1990.


VÍDEOS SOBRE O TEMA (BASTA CLICAR NOS LINKS ABAIXO):

Os astecas - descoberta de uma civilização.

Tour virtual tridimensional por Tenochtitlán.

Animação sobre os astecas.

Documentário sobre a civilização maia.

Civilizações secretas - Maias, Astecas e Incas.


UMA VISÃO DA CIDADE MAIA DE CHICHÉN ITZÁ:

O site Panoramas.dk oferece oferece visitas virtuais a diferentes cidades do mundo. O site também disponibiliza uma visão 360° da antiga cidade maia de Chichén Itzá, no atual México. Disponível por meio deste link: <http://www.panoramas.dk/7-wonders/Chichen-Itza.html>. Confira!




"Os Inventores do Brasil"

No final do Período Regencial da História do Brasil foi fundado o IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro -, que pretendia escrever a história oficial do país. Leia abaixo o texto "Os inventores do Brasil", escrito por Lorenzo Aldé e originalmente publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional (10 dez. 2008). Neste texto temos algumas informações sobre o IHGB e sua relação com a história brasileira. Boa leitura!


OS INVENTORES DO BRASIL, por Lorenzo Aldé

  • Quando começa a História do Brasil? Há controvérsias. Em 1500, com a chegada do colonizador e os primeiros registros escritos sobre a terra? Muito antes disso, com as primeiras sociedades indígenas que aqui se estabeleceram? Ou só em 1822, quando viramos um país independente?

    Pode escolher sua referência favorita, mas não deixe de levar em conta uma outra hipótese: a História do Brasil começa em 21 de outubro de 1838. Nessa data foi fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Começava então a construção oficial do nosso passado. A cargo das mentes coroadas daquela casa do saber ficava a missão de interpretar o país recém-independente: quem éramos, de onde vínhamos, qual era o nosso lugar?

    “Mentes coroadas” não é força de expressão. O IHGB nasceu fortemente vinculado ao regime imperial. Sua primeira sede funcionava dentro do Paço, no centro do Rio de Janeiro, pertinho de Pedro II. Um dos fundadores, o desembargador e político Cândido José de Araújo Viana, futuro marquês de Sapucaí, era inclusive professor do menino imperador. Mas pode-se creditar a iniciativa a dois homens: o cônego (e jornalista, e político) Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), dos tempos de D. João VI, e o marechal português (e historiador) Raimundo José da Cunha Matos (1776-1839), outro personagem do Primeiro Reinado, envolvido no episódio do “Dia do Fico”.

    Na breve descrição destes personagens fica evidente a característica principal da instituição: a composição variada. Todos membros da elite, todos monarquistas, a maioria políticos – mas gente intelectualmente destacada em áreas diversas, disposta a discutir os rumos do país. O momento era especialmente delicado. Durante o período regencial, o Brasil ainda estava longe de ser um fato consumado: revoltas explodiam de Norte (Cabanagem) a Sul (Farroupilha). Sob a ameaça da desagregação territorial, em 1840 D. Pedro II é declarado maior e assume o poder aos 14 anos. Era o momento de a elite criar uma identidade para o país. Dois anos depois, o IHGB lançou um concurso de monografias com o sugestivo título “Como escrever a História do Brasil?” E o vencedor, um naturalista alemão chamado Von Martius, não fez por menos, elaborando a versão oficial de nossa independência. Não foi ruptura, mas uma continuidade do Império português.

    Outra controvérsia rondava a definição do que seria “o povo brasileiro”. O viés mais romântico, que propunha a incorporação dos índios na raiz da nacionalidade, era defendido pelo poeta Gonçalves de Magalhães. O historiador Francisco Adolfo de Varnhagen privilegiava a matriz européia (os negros só seriam levados em conta no século XX). “Quem mais se divertia com essas discussões era o próprio D. Pedro II. Tanto que escolheu para os dois intelectuais títulos de nobreza que remetessem à sua respectiva tese nacionalista. Varnhagen virou visconde de Porto Seguro, em alusão à chegada dos portugueses, e o indigenista Magalhães tornou-se visconde do Araguaia”, comenta a historiadora Lúcia Guimarães, especialista na história do IHGB e há três anos sócia do Instituto. 

    D. Pedro II foi assíduo freqüentador dos debates. O fato de ter o imperador como patrono e mecenas costuma render à instituição o rótulo de “chapa branca”. Embora não haja dúvidas sobre o monarquismo do IHGB no século XIX, essa impressão soa anacrônica, segundo Lúcia Guimarães. “Era um espaço de contraposição de interpretações. As idéias eram debatidas, mas não impostas. A versão sobre a independência que se consolidou nos livros didáticos tinha opositores no Instituto. Varnhagen combatia a idéia de que o episódio tinha sido fruto da vontade de ‘José Bonifácio, D. Pedro I e do povo’. Ele foi o primeiro a propor a tese de que a gênese do Estado brasileiro na verdade vinha da chegada da Corte, em 1808, com a abertura dos portos. Tese que está sendo reabilitada só agora”, explica. 

    Ou seja, a idéia de “chapa branca” faz sentido atualmente, mas não é adequada para se pensar um tempo em que os contornos do Brasil mal existiam. Literalmente falando. Em 1841, convocado ao Parlamento para expor informações sobre os limites do país, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Sousa Coutinho, teve que confessar que... não sabia. Quando D. João voltou para Portugal, em 1821, levou com ele os mapas originais. Sócio do IHGB, Aureliano convocou os outros para levantar a documentação nos cartórios das províncias e viajar até as fronteiras para demarcá-las. Missões também foram enviadas a Portugal com o objetivo de copiar o maior número possível de manuscritos sobre o Brasil.  

    Como se pode imaginar, o fim do Império e a chegada da República deixaram o IHGB em situação desconfortável. Poucos dias depois do 15 de novembro de 1889, o ministro do Interior, Aristides Lobo, redigiu um decreto determinando a extinção do Instituto. “Não faça esta asneira”, teria dito o advogado Araripe Júnior, do IHGB, arrancando-lhe o decreto das mãos e rasgando-o em pedaços. Não é um órgão público, argumentava.

    De fato não era, mas a ausência do padrinho fez a entidade mergulhar em profunda crise financeira. No início da República, o Instituto lançou mão de uma estratégia temerária de sobrevivência: a figura do sócio-benemérito. Não era preciso demonstrar conhecimento – bastava pagar (e muito) para exibir-se como sócio. Foi o que fizeram os deslumbrados novos-ricos de então. Revoltado com a chegada dos novos colegas, que “maculavam” o prestígio da casa, o visconde de Taunay abriu mão de sua cadeira. Os beneméritos não tinham lá grandes pretensões: desfilavam com seus fardões mas quase não participavam dos trabalhos.

    Com o tempo, e com presidentes da envergadura de um barão do Rio Branco, o IHGB recuperou seu prestígio. Em 1910, lançou uma campanha para estimular a criação de Institutos Estaduais. Os primeiros haviam sido os de São Paulo e Pernambuco, ainda no século XIX. Dali para frente, não só os estados ganharam seus institutos, mas também muitos municípios. De São Vicente (“aqui nasceu o Brasil”) a Montes Claros (MG), de São João de Meriti (RJ) a Paranaguá (PR), o culto à memória e ao passado disseminou-se. 

    Graças às doações de seus sócios e de interlocutores diversos, o IHGB acumulou um dos principais acervos de documentação colonial e imperial do país. “Não se pode fazer uma pesquisa histórica sobre o Brasil antes do século XX sem consultar o IHGB”, decreta Arno Wheling, o atual presidente. Já a documentação histórica do último século está mais dispersa, mas o IHGB detém a guarda dos acervos presidenciais de Rodrigues Alves e Epitácio Pessoa. 

    Todo presidente da República é automaticamente “presidente de honra” do IHGB. Getulio Vargas foi um dos que mais desfrutaram do status, freqüentando as sessões e incluindo o local no roteiro oficial das visitas de chefes de Estado estrangeiros. A sede definitiva, um prédio no centro do Rio, foi conquistada em 1972 com as bênçãos do general Emílio Médici. E quando as sombras da política voltam a rondar o ambiente, os membros apressam-se a dizer: o IHGB não se mete nessa seara. Quase não há mais políticos entre os sócios – o ex-presidente José Sarney é exceção – e os confrontos ideológicos são evitados. A discussão ali é histórica e cultural. “Eles têm uma noção muito clara disso”, confirma Lúcia, involuntariamente colocando-se fora do time, “senão vira núcleo de militantes”.

    Outro cuidado da casa é zelar pelo pluralismo, pelo espírito “amador” de fazer história. Nas últimas décadas, com o crescimento das universidades, surgiu certo conflito entre a antiga “academia de ciências” e os historiadores profissionais. “Não existe só uma História, estruturalista, dos grandes tempos e durações. A História perde graça ao se limitar a esta visão. Torna homogêneo o que não é, fica descarnada, sem homem de carne e osso. A História tem que ter ‘molho’”, defende Lúcia Guimarães. Ou seja: genealogistas, antiquários, colecionadores, economistas, engenheiros, jornalistas, militares, religiosos... todos são bem-vindos. Tem sessão aberta todas as quartas, das 15h às 17h.

    Ao completar 170 anos, o IHGB mantém-se fiel à sua filosofia original. E por incrível que pareça, é daí que vem o seu frescor: ser interdisciplinar está na ordem do dia.

SITE DO IHGB

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro existe até hoje e possui um site na internet que apresenta interessantes informações sobre o IHGB. Além disso, o site disponibiliza o acervo da Revista do IHGB. Vale a pena conferir este site por meio do link abaixo:



O Período Regencial

Após a abdicação de dom Pedro I houve uma nova composição entre os grupos políticos. O Partido Português passou a chamar-se Partido Restaurador, pois lutava pelo retorno de dom Pedro I ao trono brasileiro. Todavia, após a morte do ex-imperador em 1834, os “caramurus”, como também eram chamados os restauradores, acabariam unindo-se a alguns liberais moderados para formar o Partido Regressista.

Por sua vez, o Partido Brasileiro subdividiu-se entre liberais moderados (representantes dos proprietários de terra, principalmente de São Paulo e Minas Gerais) e liberais exaltados (representantes das classes médias e dos latifundiários gaúchos). Para os moderados era necessário restabelecer a ordem, acabar com os tumultos e obedecer à Constituição. Já os liberais exaltados lutavam por mais participação política, pela autonomia das províncias, pelo fim do Senado vitalício e do Poder Moderador e contra qualquer influência portuguesa no governo. Aos gritos de “mata português”, provocavam tumultos na capital do Império.

De acordo com a Constituição de 1824, em caso de morte ou abdicação do imperador, e havendo a impossibilidade de seu herdeiro assumir o trono por razões de menoridade, uma Junta de três regentes indicados pela Assembleia Geral (Câmara de Deputados e Senado) deveria governar o Império brasileiro até que o jovem príncipe completasse 18 anos de idade. Contudo, D. Pedro I abdicara do trono durante as férias parlamentares, o que obrigou deputados e senadores que estavam no Rio de Janeiro a se reunirem de forma extraordinária e a formarem uma Regência Trina Provisória responsável por governar interinamente o Brasil. Formada por dois senadores – Nicolau Pereira de Campos Vergueiro e José Joaquim Carneiro de Campos – e pelo brigadeiro Francisco de Lima e Silva, a Regência Trina Provisória governou até o dia 17 de junho de 1831 e realizou algumas medidas como readmitir o “ministério dos brasileiros”, deposto por dom Pedro I, anistiar os prisioneiros políticos, suspender temporariamente o exercício do Poder Moderador e convocar eleições para a escolha de uma Regência Permanente.

A Assembleia Geral elegeu a Regência Trina Permanente, sendo escolhidos os deputados João Bráulio Muniz, representando as províncias do Norte, e José da Costa Carvalho, pelas do Sul. Muniz e Carvalho eram ligados aos liberais moderados. Por sua vez, o terceiro nome da Regência era o do brigadeiro Francisco de Lima e Silva.

Sob o pretexto de manter a paz interna houve a proibição de ajuntamentos noturnos nas praças e ruas e a suspensão de algumas garantias constitucionais. Em agosto de 1831, o ministro da Justiça, padre Diogo Antônio Feijó, um liberal moderado, extinguiu as guardas municipais e criou a Guarda Nacional, uma organização paramilitar constituída por milícias civis e encarregada de defender a Constituição e garantir a ordem interna. Como eram organizadas localmente, tais milícias fortaleceram o poder dos grandes proprietários rurais, porque, embora sua função fosse semelhante à do Exército, os seus membros eram civis – era preciso ser um cidadão brasileiro com idade entre 21 e 60 anos e renda anual superior a 200 mil-réis para fazer parte da Guarda – e seus oficiais, pessoas indicadas pelos chefes políticos locais. Tais chefes normalmente eram donos de terra ou pessoas de sua confiança. O posto mais alto da Guarda era o de “coronel”, e foi daí que surgiu o termo “coronelismo” para designar um sistema de poder local presente em parte considerável da história do Brasil.

A criação da Guarda Nacional revela uma tendência de descentralização do poder durante aquele período. Seguindo essa mesma tendência, em novembro de 1832 foi aprovado o Código do Processo Criminal, que aumentou o poder dos juízes de paz nas cidades e nas vilas. Esse cargo do poder judiciário havia sido criado em 1827 e era ocupado por pessoas sem formação em Direito, cuja função era julgar pequenas causas locais. Com o novo código, os juízes de paz passavam a exercer o papel de polícia e juiz local: podiam prender criminosos, julgar, preparar as listas de votantes, presidir mesas eleitorais, ajudar a compor a lista dos jurados, convocar a Guarda Nacional, etc. O juiz de paz era eleito pela população, porém, como votavam apenas indivíduos livres do sexo masculino que possuíam bens, as pessoas escolhidas para o cargo representavam os interesses dos grandes proprietários de terras e de escravos. No intuito de ascender socialmente, muitos juízes de paz se rendiam aos poderosos que, com isso, evitavam a condenação de seus capangas e clientes.

Importante passo para a descentralização do poder foi a aprovação do Ato Adicional pela Assembleia Geral, em 1834. Por meio dessa reforma na Constituição era extinto o Conselho de Estado – cujos membros haviam sido nomeados por D. Pedro I – e criadas as Assembleias Legislativas provinciais. Órgãos do Poder Legislativo, as Assembleias tinham como função elaborar leis de interesse local e nomear funcionários públicos, permitindo assim a conquista de uma relativa autonomia para as províncias. Todavia, essa autonomia era limitada, pois cabia ao imperador nomear os presidentes provinciais, homens que detinham o poder de veto sobre as decisões da Assembleia. Além disso, tanto o Poder Moderador quanto o Senado vitalício foram mantidos. O Ato Adicional de 1834 criou ainda a Regência Una, que deveria substituir a Regência Trina Permanente, estabelecendo a eleição do regente por meio do voto censitário para um mandato de quatro anos.

As eleições para regente ocorreram em abril de 1835 e contaram com a participação de cerca de 6 mil eleitores (pouco mais de 0,1% da população, estimada em 5 milhões de pessoas). Venceu o ex-ministro da Justiça, padre Diogo Antônio Feijó, que assumiu a Regência Una em outubro de 1835, em meio a uma crise de grandes proporções na economia, com o preço do açúcar em declínio no mercado externo, somando-se a isso um clima de tensão política no Império, com o início de revoltas nas províncias.

Havia uma situação de guerra civil em algumas províncias, como no Pará, onde ocorreu a rebelião conhecida como Cabanagem (1835-1840), e no Rio Grande do Sul, com a chamada Guerra dos Farrapos (1835-1845). Sem base parlamentar que lhe garantisse sustentação e acusado de não reprimir com firmeza os levantes provinciais e de ser favorável ao casamento dos padres, Feijó renunciou à Regência em setembro de 1837. O ministro do Interior, o regressista Pedro de Araújo Lima, assumiu interinamente o cargo e, meses depois, o próprio Araújo Lima foi eleito regente. No intuito de devolver ao governo central o controle de todo o aparelho administrativo e judiciário, foi aprovada em maio de 1840 a Lei de Interpretação do Ato Adicional, que restringiu os poderes das Assembleias provinciais. A essa lei se seguiram o restabelecimento do Conselho de Estado e a reforma do Código do Processo Criminal, que limitou a autoridade dos juízes de paz e fortaleceu a dos juízes municipais, subordinados ao poder judiciário central. Tais medidas – assim como o período em que foram tomadas – ficaram conhecidas como “Regresso”.

Ainda durante a segunda metade da década de 1830, novas rebeliões eclodiram em diferentes províncias, somando-se à Cabanagem no Pará e à Guerra dos Farrapos, no Sul. Na Bahia, ocorreram a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838); no Maranhão, ocorreu a Balaiada (1838-1841). Foi nesse contexto que os liberais exaltados aliaram-se a uma parte dos moderados e formaram o Partido Progressista, que defendia a autonomia das províncias e a descentralização política, e os antigos restauradores aliaram-se à outra parte dos liberais moderados e formaram o Partido Regressista, que defendia a restauração da ordem e o fortalecimento do poder central.

Os debates entre regressistas e progressistas eram intensos na capital do país. Insatisfeitos com o seu afastamento do poder desde a renúncia de Feijó, que era um liberal, os progressistas – que passaram a ser chamados de Partido Liberal – começaram a exigir a antecipação da maioridade do príncipe Pedro de Alcântara, que de acordo com a Constituição só poderia assumir o trono em 1844. Segundo os liberais, essa seria a melhor forma de fazer o país voltar à normalidade e garantir a unidade do Império.

Por sua vez, os regressistas – reunidos agora no Partido Conservador – opunham-se a tal medida, pois temiam ser afastados do poder com a antecipação da maioridade. Para estes sujeitos, a solução da crise estava na maior concentração de poderes nas mãos do governo regencial.

Em meio a tal debate, formou-se em abril de 1840 o chamado Clube da Maioridade, cuja presidência foi entregue ao liberal Antônio Carlos de Andrada e Silva, irmão de José Bonifácio. A campanha foi às ruas, com a distribuição de panfletos e a criação de quadrinhas defendendo a maioridade do jovem príncipe. O próprio Pedro de Alcântara apoiava a proposta.


Após intensas discussões, no dia 23 de julho de 1840 a Câmara e o Senado aprovaram o projeto liberal, concedendo a maioridade a dom Pedro de Alcântara, então com 14 anos de idade, e declarando-o imperador do Brasil como dom Pedro II. O episódio ficaria conhecido como Golpe da Maioridade. Logo no dia seguinte, um novo ministério, composto de representantes do Partido Liberal, seria organizado. Era o início de um reinado que iria se estender pelos 49 anos seguintes.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Alguns relatos de cronistas das Grandes Navegações

Alguns dos europeus que se aventuravam pelos mares durante as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI costumavam registrar os fatos que aconteciam durante as viagens em diários e cartas. Esses materiais são documentos importantes para o estudo daquelas navegações, pois nos revelam, entre outras coisas, a visão de mundo daqueles homens, bem como nos oferecem informações sobre as terras e as populações que foram encontradas na América.

O próprio Cristovão Colombo registrou em seus diários a sua versão da viagem financiada por Fernando e Isabel – os “reis católicos” da Espanha – que o trouxe ao continente americano. O relato de Colombo é rico em descrições da viagem e da própria chegada à América – embora o navegador genovês pensasse ter chegado ao oriente –, apresentando ainda detalhes da fauna e da flora locais. Colombo escreveu também sobre as populações indígenas que encontrou e como foram os primeiros contatos com aquelas pessoas. Chamaram-lhe a atenção o fato de aqueles homens e mulheres andarem nus, terem os corpos “bonitos”, serem “amigáveis” e serem dispostos a trocar objetos com os europeus. Ainda segundo a descrição feita por Colombo, os índios pareciam ser de fácil conversão à fé católica e aparentavam ser “bons serviçais”. Ademais, o genovês se admirou com o fato de não existirem nem índios de pele negra nem índios de pele branca, visto que eles eram da “cor dos canários”. Em seus diários, é visível o interesse do navegador por metais preciosos, em especial pelo ouro. Colombo registrou ainda que mandou capturar alguns índios para que fossem enviados à Espanha e aprendessem a língua dos colonizadores. O navegador também afirmou em algumas passagens que seria aparentemente fácil subjugar aqueles povos, demonstrando ter a ideia de tomar e garantir a posse daquele território (COLOMBO, 1991).

O texto escrito por Cristovão Colombo não apenas descreve os detalhes da aventura por ele vivida, mas é também um documento que nos permite vislumbrar os interesses envolvidos na empresa das navegações, a saber, a busca por riquezas e o desejo de levar a fé católica a outros lugares do mundo. Assim, ao destacar a facilidade com a qual seria possível dominar os povos encontrados, o que Colombo pretendia era encorajar mais viagens, e, consequentemente, a própria empresa colonizadora.

Por sua vez, a expedição que trouxe Pedro Álvares Cabral ao litoral do território que daria origem ao Brasil contou com a presença de Pero Vaz de Caminha (Porto?, 1450 – Calecute, 1500), o escrivão da armada que registrou os detalhes desta viagem em uma carta. Segundo Antonio Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa, a “Carta do achamento” do Brasil escrita por Caminha foi redigida “entre os dias 26 de abril e 1° de maio de 1500” e tinha como objetivo “informar ao rei de Portugal, dom Manuel I, o descobrimento e apresentar-lhe o que aí se encontrou”. Ainda de acordo com os pesquisadores, a carta tem um “estilo claro” e a “objetividade que convém a um relatório”. Por sua vez, os fatos são apresentados em “ordem cronológica”, e revelam o que aconteceu entre os dias 09/03/1500, data do começo da viagem, e 02/05/1500, quando a expedição deixou o Brasil (OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 17).

É curioso perceber que Caminha se diz, de maneira humilde no início da carta, um ignorante, e que não registrará nada mais do que aquilo que viu e que lhe pareceu (CAMINHA, 2006, p. 19), tentando assim se mostrar o mais objetivo possível em seu relato. A terra foi avistada no dia 21 de abril por meio de um “grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o monte Pascoal e à terra – a Terra de Vera Cruz” (CAMINHA, 2006, p. 20).

Já sobre os primeiros contatos com os índios, Caminha escreveu: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 2006, p. 20). O escrivão registrou ainda a barreira linguística que dificultava a comunicação com aquelas pessoas – não foi possível “deles haver fala” –, mas destaca também que o primeiro contato foi pacífico e que houve entendimento entre os dois grupos por meio da relação de troca de objetos (Cf. CAMINHA, 2006, p. 20-21).

Em seguida, Caminha relatou um momento de confraternização entre índios e europeus: “Diogo Dias [...] levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles [os índios] a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da sua gaita” (CAMINHA, 2006, p. 21). Todavia, em outra passagem, o escrivão afirmou que os indígenas nem sempre ficavam tão próximos dos brancos: “Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam [...] e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar” (CAMINHA, 2006, p. 22). Assim, os índios foram vistos por Caminha como seres que deviam ser tratados com um certo cuidado, afinal, era preciso garantir que eles ficassem “mansos” em relação à presença dos europeus.

A impressão que os índios causaram em Caminha foi boa: “os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser”, “Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam” (CAMINHA, 2006, p. 22).

Em outra passagem do texto, Caminha falou da tentativa de cristianização dos índios: “E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção” (CAMINHA, 2006, p. 23).

O escrivão fez questão de complementar ainda: “E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tomados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos. Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação”. (CAMINHA, 2006, p. 24-25).

Assim, de maneira parecida ao que fizera Colombo, Pero Vaz de Caminha salientou em seu relato a possibilidade de converter os índios à fé católica, utilizando para isso descrições do comportamento aparentemente dócil daquelas pessoas. Cabe ainda dizer que em outras passagens da carta, Caminha se mostra encantado com os recursos naturais do lugar e demonstra uma constante preocupação em encontrar metais preciosos.

O frade franciscano francês André Thevet (Angoulême, 1502 – Paris, 1590) viajou com Villegaignon para o Brasil em 1555 com o intuito de estabelecer aqui uma colônia francesa batizada de França Antártica. Permaneceu em solo americano de novembro de 1555 a janeiro de 1556. Thevet assim descreveu os índios do lugar: “esta terra foi e é ainda hoje habitada por gente prodigiosamente estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade nenhuma, que vive como os animais irracionais, do modo como a natureza a fez, comendo raízes, andando sempre nua (tanto homens quanto mulheres), e isso talvez até que, convivendo com os cristãos, aos poucos se despoje dessa brutalidade, passando a vestir-se de modo mais civilizado e humano. No que devemos efetivamente louvar o Criador, que nos esclareceu, não permitindo que fôssemos assim brutais, como estes pobres americanos” (THEVET, 2006, p. 60).

Como se vê, Thevet descreveu os índios julgando-os a partir dos padrões europeus de comportamento. Desse modo, as pessoas do continente americano foram vistas como inferiores em relação ao homem civilizado vindo da Europa, portador este da razão, da verdadeira fé e dos bons modos. O olhar de Thevet, portanto, é marcado por uma perspectiva etnocêntrica.

Thevet registrou ainda uma crença da população indígena: “os nossos selvagens fazem menção a um grande Senhor, que na língua deles se chama Tupã e que, morando no céu, faz chover e trovejar. Mas não têm eles maneira nem hora de orar a esse deus ou de cultuá-lo, assim como tampouco há lugar próprio para isso” (THEVET, 2006, p. 61). Mais uma vez, o etnocentrismo se manifesta, pois Thevet avalia a crença indígena a partir dos modelos europeus de religiosidade, com seus templos e rituais.

Thevet detalhou ainda as relações entre indígenas e europeus: “Assim que esta terra foi descoberta, [...] esses selvagens, espantados ao verem as feições e os modos dos cristãos (que nunca antes haviam visto), tomaram-nos por profetas e os homenagearam como se fossem deuses. E essa canalha assim fez até que, percebendo estarem eles sujeitos a doenças, morte e paixões semelhantes às suas, começou a desprezá-los e a tratá-los pior que de costume, como ocorreu com todos os que depois chegaram, espanhóis e portugueses. De modo que, se esses selvagens ficarem irritados, não custarão a matar um cristão e a comê-lo, como fazem com seus inimigos. Mas isso ocorre em alguns lugares, especialmente entre os canibais, que não vivem de outra coisa, como fazemos aqui com bois e carneiros” (THEVET, 2006, p. 61).

Temos aqui, em verdade, uma diferença importante em relação aos relatos anteriormente citados e analisados. Em verdade, Thevet aponta para a ocorrência de conflitos entre indígenas e europeus, destacando com sua perspectiva etnocêntrica a crueldade da antropofagia praticada pelos indígenas. Contudo, é preciso esclarecer que o hábito de comer carne humana, uma prática de algumas populações indígenas que habitavam o território que viria a ser o Brasil, não era simplesmente uma opção alimentar, como parece pensar Thevet, mas sim um ritual místico-religioso.

Outro francês, Jean de Léry (La Margelle, 1534 – Berna, 1611), um homem de família burguesa e calvinista que, quando jovem, começou a estudar teologia, também viajou para o Brasil em 1556 para se estabelecer na colônia francesa fundada por Villegaignon. Retornou para a Europa em 1558, fixando-se em Genebra, onde concluiu os estudos em teologia e tornou-se ministro protestante. A sua narrativa sobre o período que passou no Brasil, quando conviveu com os índios, foi escrita dezoito anos depois do período que passou nestas terras e foi publicada em 1578, fazendo sucesso junto ao público leitor europeu e sendo traduzida para o holandês, o alemão e o latim (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 67-68).

Ao descrever os índios, Léry destacou como se fazia a justiça entre aquelas populações onde, segundo o seu relato, tudo era baseado no princípio de “vida por vida, olho por olho, dente por dente”. Contudo, mesmo narrando algumas brigas e alguns conflitos que ocorriam entre os índios, o francês salientou que, na maior parte do tempo, os índios se davam bem entre si e viviam em paz uns com os outros (Cf. LÉRY, 2006, p. 69). Em seu relato, Léry aponta para o fato de os índios não se fixarem em um único local, mas viverem mudando de região. É comum no texto do francês a opinião de que certos costumes indígenas são melhores que os dos europeus, como é o caso do hábito de dormir em redes: “pergunto a quem as experimentou se de fato não é melhor nelas [nas redes] dormir, principalmente no verão, do que em nossas camas comuns” (LÉRY, 2006, p. 71). Sobre as mulheres indígenas, Léry descreveu os trabalhos domésticos feitos por elas. Já sobre a forma como índios recebem as pessoas, o francês escreveu: “nossos tupinambás recebem com grande humanidade os estrangeiros amigos que os vão visitar, ainda que os franceses e outros daqui que não entendam a língua deles se sintam no começo admirados e assombrados” (LÉRY, 2006, p. 72). Sobre a sua primeira visita a uma aldeia, Léry registrou: “senti-me aturdido com aquela gritaria e correria pela aldeia com meus equipamentos [um pouco antes, Léry contara que os índios haviam pegado seu chapéu, sua espada, seu cinto, e seu casaco], o que não só me fazia pensar que tinha perdido tudo como também me deixava sem saber onde estava” (LÉRY, 2006, p. 73). Contudo, Léry esclarece em seguida que fazia parte dos modos indígenas brincar com as coisas alheias por um tempo, mas que depois devolviam tudo ao dono (Cf. LÉRY, 2006, p. 73).

No que diz respeito à antropofagia, temos que a presença deste hábito entre os índios amedrontou Léry: “E estava eu tão cansado, querendo apenas repousar, que, depois de comer um pouco de farinha de raízes e de outros alimentos que nos haviam oferecido, estendi-me e fiquei deitado na rede na qual me havia sentado. Mas não dormi, porque, além do barulho que os selvagens fizeram a noite toda em meus ouvidos com aquelas danças e assobios, a comerem o prisioneiro, um deles, trazendo na mão um dos pés deste, cozido e tostado, aproximou-se de mim e perguntou-me (como soube depois, porque então não entendi) se queria um pedaço; comportamento este que provocou em mim tanto pavor que nem cabe perguntar se perdi toda a vontade de dormir. Pois como eu acreditasse que aqueles sinais e aquela exibição da carne humana, que ele devorava, eram uma ameaça, e que ele estivesse dizendo e dando a entender que em breve eu estaria com aquele aspecto, e como uma dúvida puxa outra, logo desconfiei que o intérprete, traindo-me deliberadamente, me havia abandonado, deixando-me nas mãos daqueles bárbaros. E se eu tivesse visto alguma abertura para sair e fugir dali, não teria hesitado. Mas vendo-me cercado de todos os lados por aquela gente cujas intenções ignorava (pois, como se saberá, eles não pensavam de modo algum em fazer-me mal), acreditava eu firmemente e previa mesmo que seria devorado, o que me fez invocar Deus em meu coração durante toda aquela noite” (LÉRY, 2006, p. 74).

Apesar do temor descrito neste episódio, Léry assume uma postura interessante, ao tentar valorizar certos aspectos da cultura indígena. Ao falar de como os índios recebiam os seus visitantes, salientando que aqueles povos ofereciam comida, bebida e lugar onde dormir a quem chegasse amigavelmente às suas aldeias, Léry é capaz de afirmar o seguinte: “tendo eu vivido com eles, confiaria mais neles e de fato estava mais seguro em meio àquele povo que chamamos selvagem do que me sinto hoje em alguns lugares de nossa França, com franceses desleais e degenerados: falo daqueles que assim são, pois quanto à gente de bem, de que graças a Deus o reino ainda não está desprovido, muito me entristeceria denegrir sua honra” (LÉRY, 2006, p. 79).

Como o nosso leitor pode observar, Léry procurou compreender o comportamento dos índios registrando certo estranhamento por um lado, mas em contrapartida também chamando a atenção para aspectos positivos daquelas populações, revelando que seus preconceitos em relação a aquelas pessoas caíam por terra quando os conhecia melhor. Assim, a postura de Léry é emblemática quando se pensa nas formas como os homens lidam com as diferenças culturais ao longo do tempo. Pode-se dizer que Léry revelou possuir um certo senso de relatividade dos costumes – o que é estranho para um grupo, pode não ser para outro – e também uma simpatia para com os indígenas, o que lhe permitiu melhor compreendê-los.   

Outro relato interessante que foi produzido no contexto das grandes navegações é o de Hans Staden, homem de quem poucos dados biográficos existem. Sabe-se que viveu no século XVI, tendo nascido em Hessen, na Alemanha. Staden viajou duas vezes ao Brasil, na primeira foi à região de Pernambuco em 1547, de onde retornou a Portugal no ano seguinte, e, na segunda, em 1550, estabeleceu-se na região de São Vicente. Entre meados de janeiro e 31 de novembro de 1553, Staden foi prisioneiro dos tupinambás, em um período no qual era frequentemente ameaçado de morte e de ser devorado em um ritual da tribo. O seu relato sobre suas aventuras foi publicado pela primeira vez em 1557, em Hessen, e foi posteriormente traduzido para o flamengo, o holandês, o latim e o francês (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 83).

Sobre o seu aprisionamento, Staden escreveu: “Quando entrei [em uma casa dos índios], correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua língua: ‘Che anama pipike aé’, o que quer dizer: ‘Vingo em ti o golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aqueles entre os quais tu estiveste’. Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obrigado a me deitar em uma rede. Voltaram as mulheres e continuaram a me bater e maltratar, ameaçando de me devorar” (STADEN, 2006, p. 85).

Vale destacar que durante o período em que passou com os índios, Hans Staden aprendeu muito sobre a vida da tribo. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, Staden registrou em seu relato que a maioria dos índios do sexo masculino tinha apenas uma mulher, mas os mais importantes do grupo tinham mais de uma, podendo chegar a 13 ou 14 esposas, que em geral se davam bem entre si (Cf. STADEN, 2006, p. 86).

Na narrativa de Hans Staden o que chama a atenção é a descrição dos modos como os indígenas tratavam os seus inimigos. Depois de aprisionado, o inimigo era trazido para a casa de algum indígena, onde recebia bofetadas de mulheres e crianças, era enfeitado com penas pardas, tinha as sobrancelhas cortadas e era amarrado para que não fugisse. Uma mulher o guardava e tinha relações com ele. Se ela concebesse um filho, a criança seria educada até ficar grande, e, quando fosse a vontade da tribo, ela seria morta e devorada. Quanto ao prisioneiro, era tratado por algum tempo com boa comida, porém, quando chegasse o dia do sacrifício, ele era amarrado com uma corda comprida. Selvagens de outras tribos eram convidados, e havia danças ao redor do prisioneiro, que era conduzido pela “praça” da aldeia. Amarrado pelo meio da corda, o prisioneiro era impedido de fugir por dois grupos de pessoas que o seguravam, cada um, por uma das pontas da corda. Um dos integrantes da tribo matava o prisioneiro com um golpe de bastão na nuca. Então, o corpo do inimigo era levado ao fogo e cortado. Uma sopa era feita com os intestinos e consumida pelas mulheres e crianças, que também comiam a carne da cabeça, os miolos e a língua. (Cf. STADEN, 2006, p. 87-88).

Rico em detalhes, o relato de Hans Staden nos permite vislumbrar os perigos aos quais podia-se estar submetido em solo americano. Em verdade, a aventura das grandes navegações dos séculos XV e XVI era repleta de riscos aos europeus que se lançavam à conquista ultramarina. 

Para finalizar, mencionemos um relato do início do século XVI cuja autoria ainda não foi determinada com precisão. Trata-se da conhecida narrativa do “Piloto Anônimo” acerca da expedição de Pedro Álvares Cabral. Ao contrário do que dissera Pero Vaz de Caminha, o texto do Piloto Anônimo afirma que houve vista de terra no dia 24 de abril (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30). O texto apresenta a sua versão da história descrevendo os aspectos físicos dos índios – “gente parda, bem disposta, com cabelos compridos; andavam todos nus sem vergonha alguma, e cada um deles trazia seu arco com frechas” –, a barreira linguística nos primeiros contatos – “não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem”, os índios “não se entendiam por falas, nem mesmo por acenos” – e o comportamento dos indígenas durante a realização de uma missa – eles “bailavam e tangiam nos seus instrumentos”. O texto ainda apresenta informações a respeito da fauna e da flora locais, tecendo elogios às riquezas naturais do lugar – os papagaios, o inhame, as árvores, a abundância de água, etc. (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30-31).   

Em seguida, o texto do Piloto Anônimo apresenta mais uma informação interessante: “Nos dias que aqui estivemos, determinou Pedro Álvares Cabral fazer saber ao nosso Sereníssimo Rei o descobrimento desta terra, e deixar nela dois homens condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito; e assim despachou um navio que vinha em nossa conserva carregado de mantimentos, além dos doze sobreditos, o qual trouxe a el-rei as cartas em que se continha tudo quanto tínhamos visto e descoberto. Despachado o navio, saiu o capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira muito grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dois degredados neste mesmo lugar, os quais começaram a chorar, e foram animados pelos naturais do país, que mostravam ter piedade deles” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 32).

O relato então descreve a partida da frota de Cabral daquela região e a posterior viagem em direção ao oriente, em uma narrativa que é marcada pelas descrições dos perigos aos quais aqueles homens estavam submetidos: “o mar embraveceu-se por maneira tal que parecia levantar-nos ao céu, até que o vento se mudou de repente, e posto que a tempestade ainda era tão forte que não nos atrevíamos a largar as velas, ainda assim, navegando sem elas, perdemo-nos uns dos outros, de modo que a capitaina com duas outras naus tomaram um rumo, outra chamada ‘El-Rei’ com mais duas tomaram outro, e as que restavam ainda outro, e assim passamos esta tempestade vinte dias consecutivos sempre em árvore seca, até que aos 16 do mês de junho houvemos vista da terra da Arábia, onde surgimos, e chegados à costa pudemos fazer uma boa pescaria” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 33).

Naquele tempo, lançar-se ao mar sem o conhecimento e as tecnologias que temos hoje era uma aventura cheia de riscos, e muitos morreram durante as grandes navegações. Posto isso, é preciso dizer que os contatos entre os navegadores europeus e os povos que viviam no continente americano se deram a partir de uma conjuntura muito específica. Encontrando os mais diferentes povos em solo americano, portadores de costumes até então desconhecidos na Europa, os europeus que aqui chegaram lançaram muitas vezes um olhar etnocêntrico sobre as populações indígenas.

Ver o outro como inferior ajudava a justificar a conquista do território, a dominação, a cristianização e, não tardou a demorar, também o extermínio dos índios. O homem europeu, ao se considerar superior, sentia-se no direito de explorar o continente americano. No contato entre as diferentes culturas, os navegadores vindos da Europa não puderam deixar de estranhar e condenar certos hábitos indígenas. Por outro lado, a postura de um homem como Jean de Léry, como se viu, nos mostra que havia quem estivesse disposto a entender melhor o modo de vida das pessoas que habitavam a América antes da chegada dos europeus a partir do final do século XV.

O que se pode concluir a partir dos relatos de alguns cronistas das grandes navegações aqui brevemente analisados é que a relação com o “outro”, com aquele que nos é diferente, é quase sempre marcada por dificuldades e pelo estranhamento. Contudo, compreender melhor o outro e sua forma de ver o mundo é um exercício importante, ainda mais quando se vive em um mundo que ainda apresenta tantos preconceitos e formas de intolerância como é o nosso mundo de hoje.

Desse ponto de vista, estudar como foram os contatos entre os europeus e os indígenas, bem como refletir acerca da maneira pela qual os homens do Velho Mundo lidavam com as diferenças no século XVI, pode nos auxiliar a pensar nas formas como nós, hoje em dia, lidamos com as diferenças culturais. Nessa perspectiva, cronistas como Colombo, Caminha, Thevet, Léry e Staden ainda têm muito a nos ensinar.


 Bibliografia

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta do achamento do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 19-25.

COLOMBO, Cristovão. Diários da descoberta da América: as quatro viagens e o testamento. Porto Alegre: L&PM, 1991.

LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 69-81.

OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006.

STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 85-89.


THEVET, André. As singularidades da França Antártica. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 59-65.