Alguns dos europeus que se aventuravam
pelos mares durante as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI costumavam
registrar os fatos que aconteciam durante as viagens em diários e cartas. Esses
materiais são documentos importantes para o estudo daquelas navegações, pois
nos revelam, entre outras coisas, a visão de mundo daqueles homens, bem como
nos oferecem informações sobre as terras e as populações que foram encontradas
na América.
O próprio Cristovão Colombo registrou em
seus diários a sua versão da viagem financiada por Fernando e Isabel – os “reis
católicos” da Espanha – que o trouxe ao continente americano. O relato de
Colombo é rico em descrições da viagem e da própria chegada à América – embora
o navegador genovês pensasse ter chegado ao oriente –, apresentando ainda
detalhes da fauna e da flora locais. Colombo escreveu também sobre as
populações indígenas que encontrou e como foram os primeiros contatos com
aquelas pessoas. Chamaram-lhe a atenção o fato de aqueles homens e mulheres
andarem nus, terem os corpos “bonitos”, serem “amigáveis” e serem dispostos a
trocar objetos com os europeus. Ainda segundo a descrição feita por Colombo, os
índios pareciam ser de fácil conversão à fé católica e aparentavam ser “bons
serviçais”. Ademais, o genovês se admirou com o fato de não existirem nem
índios de pele negra nem índios de pele branca, visto que eles eram da “cor dos
canários”. Em seus diários, é visível o interesse do navegador por metais
preciosos, em especial pelo ouro. Colombo registrou ainda que mandou capturar
alguns índios para que fossem enviados à Espanha e aprendessem a língua dos
colonizadores. O navegador também afirmou em algumas passagens que seria
aparentemente fácil subjugar aqueles povos, demonstrando ter a ideia de tomar e
garantir a posse daquele território (COLOMBO, 1991).
O texto escrito por Cristovão Colombo
não apenas descreve os detalhes da aventura por ele vivida, mas é também um
documento que nos permite vislumbrar os interesses envolvidos na empresa das
navegações, a saber, a busca por riquezas e o desejo de levar a fé católica a
outros lugares do mundo. Assim, ao destacar a facilidade com a qual seria
possível dominar os povos encontrados, o que Colombo pretendia era encorajar
mais viagens, e, consequentemente, a própria empresa colonizadora.
Por sua vez, a expedição que trouxe
Pedro Álvares Cabral ao litoral do território que daria origem ao Brasil contou
com a presença de Pero Vaz de Caminha (Porto?, 1450 – Calecute, 1500), o escrivão
da armada que registrou os detalhes desta viagem em uma carta. Segundo Antonio
Carlos Olivieri e Marco Antonio Villa, a “Carta do achamento” do Brasil escrita
por Caminha foi redigida “entre os dias 26 de abril e 1° de maio de 1500” e tinha
como objetivo “informar ao rei de Portugal, dom Manuel I, o descobrimento e
apresentar-lhe o que aí se encontrou”. Ainda de acordo com os pesquisadores, a
carta tem um “estilo claro” e a “objetividade que convém a um relatório”. Por
sua vez, os fatos são apresentados em “ordem cronológica”, e revelam o que
aconteceu entre os dias 09/03/1500, data do começo da viagem, e 02/05/1500,
quando a expedição deixou o Brasil (OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 17).
É curioso perceber que Caminha se diz,
de maneira humilde no início da carta, um ignorante, e que não registrará nada
mais do que aquilo que viu e que lhe pareceu (CAMINHA, 2006, p. 19), tentando
assim se mostrar o mais objetivo possível em seu relato. A terra foi avistada
no dia 21 de abril por meio de um “grande monte, mui alto e redondo; e doutras
serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte
alto o capitão pôs nome – o monte Pascoal e à terra – a Terra de Vera Cruz”
(CAMINHA, 2006, p. 20).
Já sobre os primeiros contatos com os
índios, Caminha escreveu: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes
cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos
rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os
arcos. E eles pousaram” (CAMINHA, 2006, p. 20). O escrivão registrou ainda a
barreira linguística que dificultava a comunicação com aquelas pessoas – não
foi possível “deles haver fala” –, mas destaca também que o primeiro contato
foi pacífico e que houve entendimento entre os dois grupos por meio da relação
de troca de objetos (Cf. CAMINHA, 2006, p. 20-21).
Em seguida, Caminha relatou um momento
de confraternização entre índios e europeus: “Diogo Dias [...] levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles [os índios] a dançar,
tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao
som da sua gaita” (CAMINHA, 2006, p. 21). Todavia, em outra passagem, o
escrivão afirmou que os indígenas nem sempre ficavam tão próximos dos brancos:
“Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem,
logo duma mão para a outra se esquivavam [...] e tudo se passa como eles
querem, para os bem amansar” (CAMINHA, 2006, p. 22). Assim, os índios foram
vistos por Caminha como seres que deviam ser tratados com um certo cuidado,
afinal, era preciso garantir que eles ficassem “mansos” em relação à presença
dos europeus.
A impressão que os índios causaram em
Caminha foi boa: “os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não
pode mais ser”, “Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes.
Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e
depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam” (CAMINHA,
2006, p. 22).
Em outra passagem do texto, Caminha falou
da tentativa de cristianização dos índios: “E quando veio ao Evangelho, que nos
erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e
alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar
como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se
puseram assim todos, como estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira
sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção” (CAMINHA,
2006, p. 23).
O escrivão fez questão de complementar ainda:
“E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra
coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que
nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma
idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande, que todos serão tomados ao desejo de Vossa
Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os
batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois
degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual
esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a
redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem,
para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não
seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência
vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação”.
(CAMINHA, 2006, p. 24-25).
Assim, de maneira parecida ao que fizera
Colombo, Pero Vaz de Caminha salientou em seu relato a possibilidade de
converter os índios à fé católica, utilizando para isso descrições do
comportamento aparentemente dócil daquelas pessoas. Cabe ainda dizer que em
outras passagens da carta, Caminha se mostra encantado com os recursos naturais
do lugar e demonstra uma constante preocupação em encontrar metais preciosos.
O frade franciscano francês André Thevet
(Angoulême, 1502 – Paris, 1590) viajou com Villegaignon para o Brasil em 1555
com o intuito de estabelecer aqui uma colônia francesa batizada de França
Antártica. Permaneceu em solo americano de novembro de 1555 a janeiro de 1556.
Thevet assim descreveu os índios do lugar: “esta terra foi e é ainda hoje
habitada por gente prodigiosamente estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem
religião, sem civilidade nenhuma, que vive como os animais irracionais, do modo
como a natureza a fez, comendo raízes, andando sempre nua (tanto homens quanto
mulheres), e isso talvez até que, convivendo com os cristãos, aos poucos se
despoje dessa brutalidade, passando a vestir-se de modo mais civilizado e
humano. No que devemos efetivamente louvar o Criador, que nos esclareceu, não
permitindo que fôssemos assim brutais, como estes pobres americanos” (THEVET,
2006, p. 60).
Como se vê, Thevet descreveu os índios
julgando-os a partir dos padrões europeus de comportamento. Desse modo, as
pessoas do continente americano foram vistas como inferiores em relação ao
homem civilizado vindo da Europa, portador este da razão, da verdadeira fé e
dos bons modos. O olhar de Thevet, portanto, é marcado por uma perspectiva
etnocêntrica.
Thevet registrou ainda uma crença da
população indígena: “os nossos selvagens fazem menção a um grande Senhor, que
na língua deles se chama Tupã e que, morando no céu, faz chover e trovejar. Mas
não têm eles maneira nem hora de orar a esse deus ou de cultuá-lo, assim como
tampouco há lugar próprio para isso” (THEVET, 2006, p. 61). Mais uma vez, o
etnocentrismo se manifesta, pois Thevet avalia a crença indígena a partir dos
modelos europeus de religiosidade, com seus templos e rituais.
Thevet detalhou ainda as relações entre
indígenas e europeus: “Assim que esta terra foi descoberta, [...] esses
selvagens, espantados ao verem as feições e os modos dos cristãos (que nunca
antes haviam visto), tomaram-nos por profetas e os homenagearam como se fossem
deuses. E essa canalha assim fez até que, percebendo estarem eles sujeitos a
doenças, morte e paixões semelhantes às suas, começou a desprezá-los e a
tratá-los pior que de costume, como ocorreu com todos os que depois chegaram,
espanhóis e portugueses. De modo que, se esses selvagens ficarem irritados, não
custarão a matar um cristão e a comê-lo, como fazem com seus inimigos. Mas isso
ocorre em alguns lugares, especialmente entre os canibais, que não vivem de
outra coisa, como fazemos aqui com bois e carneiros” (THEVET, 2006, p. 61).
Temos aqui, em verdade, uma diferença
importante em relação aos relatos anteriormente citados e analisados. Em
verdade, Thevet aponta para a ocorrência de conflitos entre indígenas e
europeus, destacando com sua perspectiva etnocêntrica a crueldade da
antropofagia praticada pelos indígenas. Contudo, é preciso esclarecer que o
hábito de comer carne humana, uma prática de algumas populações indígenas que
habitavam o território que viria a ser o Brasil, não era simplesmente uma opção
alimentar, como parece pensar Thevet, mas sim um ritual místico-religioso.
Outro francês, Jean de Léry (La
Margelle, 1534 – Berna, 1611), um homem de família burguesa e calvinista que,
quando jovem, começou a estudar teologia, também viajou para o Brasil em 1556
para se estabelecer na colônia francesa fundada por Villegaignon. Retornou para
a Europa em 1558, fixando-se em Genebra, onde concluiu os estudos em teologia e
tornou-se ministro protestante. A sua narrativa sobre o período que passou no
Brasil, quando conviveu com os índios, foi escrita dezoito anos depois do
período que passou nestas terras e foi publicada em 1578, fazendo sucesso junto
ao público leitor europeu e sendo traduzida para o holandês, o alemão e o latim
(Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 67-68).
Ao descrever os índios, Léry destacou
como se fazia a justiça entre aquelas populações onde, segundo o seu relato,
tudo era baseado no princípio de “vida por vida, olho por olho, dente por
dente”. Contudo, mesmo narrando algumas brigas e alguns conflitos que ocorriam
entre os índios, o francês salientou que, na maior parte do tempo, os índios se
davam bem entre si e viviam em paz uns com os outros (Cf. LÉRY, 2006, p. 69).
Em seu relato, Léry aponta para o fato de os índios não se fixarem em um único
local, mas viverem mudando de região. É comum no texto do francês a opinião de
que certos costumes indígenas são melhores que os dos europeus, como é o caso
do hábito de dormir em redes: “pergunto a quem as experimentou se de fato não é
melhor nelas [nas redes] dormir, principalmente no verão, do que em nossas
camas comuns” (LÉRY, 2006, p. 71). Sobre as mulheres indígenas, Léry descreveu
os trabalhos domésticos feitos por elas. Já sobre a forma como índios recebem
as pessoas, o francês escreveu: “nossos tupinambás recebem com grande
humanidade os estrangeiros amigos que os vão visitar, ainda que os franceses e
outros daqui que não entendam a língua deles se sintam no começo admirados e
assombrados” (LÉRY, 2006, p. 72). Sobre a sua primeira visita a uma aldeia, Léry
registrou: “senti-me aturdido com aquela gritaria e correria pela aldeia com
meus equipamentos [um pouco antes, Léry contara que os índios haviam pegado seu
chapéu, sua espada, seu cinto, e seu casaco], o que não só me fazia pensar que
tinha perdido tudo como também me deixava sem saber onde estava” (LÉRY, 2006,
p. 73). Contudo, Léry esclarece em seguida que fazia parte dos modos indígenas
brincar com as coisas alheias por um tempo, mas que depois devolviam tudo ao
dono (Cf. LÉRY, 2006, p. 73).
No que diz respeito à antropofagia,
temos que a presença deste hábito entre os índios amedrontou Léry: “E estava eu
tão cansado, querendo apenas repousar, que, depois de comer um pouco de farinha
de raízes e de outros alimentos que nos haviam oferecido, estendi-me e fiquei
deitado na rede na qual me havia sentado. Mas não dormi, porque, além do
barulho que os selvagens fizeram a noite toda em meus ouvidos com aquelas
danças e assobios, a comerem o prisioneiro, um deles, trazendo na mão um dos
pés deste, cozido e tostado, aproximou-se de mim e perguntou-me (como soube
depois, porque então não entendi) se queria um pedaço; comportamento este que
provocou em mim tanto pavor que nem cabe perguntar se perdi toda a vontade de
dormir. Pois como eu acreditasse que aqueles sinais e aquela exibição da carne
humana, que ele devorava, eram uma ameaça, e que ele estivesse dizendo e dando
a entender que em breve eu estaria com aquele aspecto, e como uma dúvida puxa
outra, logo desconfiei que o intérprete, traindo-me deliberadamente, me havia
abandonado, deixando-me nas mãos daqueles bárbaros. E se eu tivesse visto
alguma abertura para sair e fugir dali, não teria hesitado. Mas vendo-me
cercado de todos os lados por aquela gente cujas intenções ignorava (pois, como
se saberá, eles não pensavam de modo algum em fazer-me mal), acreditava eu
firmemente e previa mesmo que seria devorado, o que me fez invocar Deus em meu
coração durante toda aquela noite” (LÉRY, 2006, p. 74).
Apesar do temor descrito neste episódio,
Léry assume uma postura interessante, ao tentar valorizar certos aspectos da
cultura indígena. Ao falar de como os índios recebiam os seus visitantes,
salientando que aqueles povos ofereciam comida, bebida e lugar onde dormir a
quem chegasse amigavelmente às suas aldeias, Léry é capaz de afirmar o seguinte:
“tendo eu vivido com eles, confiaria mais neles e de fato estava mais seguro em
meio àquele povo que chamamos selvagem do que me sinto hoje em alguns lugares
de nossa França, com franceses desleais e degenerados: falo daqueles que assim
são, pois quanto à gente de bem, de que graças a Deus o reino ainda não está
desprovido, muito me entristeceria denegrir sua honra” (LÉRY, 2006, p. 79).
Como o nosso leitor pode observar, Léry
procurou compreender o comportamento dos índios registrando certo estranhamento
por um lado, mas em contrapartida também chamando a atenção para aspectos
positivos daquelas populações, revelando que seus preconceitos em relação a
aquelas pessoas caíam por terra quando os conhecia melhor. Assim, a postura de
Léry é emblemática quando se pensa nas formas como os homens lidam com as
diferenças culturais ao longo do tempo. Pode-se dizer que Léry revelou possuir
um certo senso de relatividade dos costumes – o que é estranho para um grupo, pode
não ser para outro – e também uma simpatia para com os indígenas, o que lhe
permitiu melhor compreendê-los.
Outro relato interessante que foi
produzido no contexto das grandes navegações é o de Hans Staden, homem de quem
poucos dados biográficos existem. Sabe-se que viveu no século XVI, tendo
nascido em Hessen, na Alemanha. Staden viajou duas vezes ao Brasil, na primeira
foi à região de Pernambuco em 1547, de onde retornou a Portugal no ano
seguinte, e, na segunda, em 1550, estabeleceu-se na região de São Vicente.
Entre meados de janeiro e 31 de novembro de 1553, Staden foi prisioneiro dos
tupinambás, em um período no qual era frequentemente ameaçado de morte e de ser
devorado em um ritual da tribo. O seu relato sobre suas aventuras foi publicado
pela primeira vez em 1557, em Hessen, e foi posteriormente traduzido para o
flamengo, o holandês, o latim e o francês (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 83).
Sobre o seu aprisionamento, Staden
escreveu: “Quando entrei [em uma casa dos índios], correram as mulheres ao meu
encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua
língua: ‘Che anama pipike aé’, o que quer dizer: ‘Vingo em ti o golpe que matou
o meu amigo, o qual foi morto por aqueles entre os quais tu estiveste’.
Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obrigado a me deitar em
uma rede. Voltaram as mulheres e continuaram a me bater e maltratar, ameaçando
de me devorar” (STADEN, 2006, p. 85).
Vale destacar que durante o período em
que passou com os índios, Hans Staden aprendeu muito sobre a vida da tribo. No
que diz respeito ao casamento, por exemplo, Staden registrou em seu relato que
a maioria dos índios do sexo masculino tinha apenas uma mulher, mas os mais
importantes do grupo tinham mais de uma, podendo chegar a 13 ou 14 esposas, que
em geral se davam bem entre si (Cf. STADEN, 2006, p. 86).
Na narrativa de Hans Staden o que chama
a atenção é a descrição dos modos como os indígenas tratavam os seus inimigos.
Depois de aprisionado, o inimigo era trazido para a casa de algum indígena,
onde recebia bofetadas de mulheres e crianças, era enfeitado com penas pardas,
tinha as sobrancelhas cortadas e era amarrado para que não fugisse. Uma mulher
o guardava e tinha relações com ele. Se ela concebesse um filho, a criança
seria educada até ficar grande, e, quando fosse a vontade da tribo, ela seria
morta e devorada. Quanto ao prisioneiro, era tratado por algum tempo com boa
comida, porém, quando chegasse o dia do sacrifício, ele era amarrado com uma
corda comprida. Selvagens de outras tribos eram convidados, e havia danças ao
redor do prisioneiro, que era conduzido pela “praça” da aldeia. Amarrado pelo
meio da corda, o prisioneiro era impedido de fugir por dois grupos de pessoas
que o seguravam, cada um, por uma das pontas da corda. Um dos integrantes da
tribo matava o prisioneiro com um golpe de bastão na nuca. Então, o corpo do
inimigo era levado ao fogo e cortado. Uma sopa era feita com os intestinos e
consumida pelas mulheres e crianças, que também comiam a carne da cabeça, os
miolos e a língua. (Cf. STADEN, 2006, p. 87-88).
Rico em detalhes, o relato de Hans
Staden nos permite vislumbrar os perigos aos quais podia-se estar submetido em
solo americano. Em verdade, a aventura das grandes navegações dos séculos XV e
XVI era repleta de riscos aos europeus que se lançavam à conquista
ultramarina.
Para finalizar, mencionemos um relato do
início do século XVI cuja autoria ainda não foi determinada com precisão.
Trata-se da conhecida narrativa do “Piloto Anônimo” acerca da expedição de Pedro
Álvares Cabral. Ao contrário do que dissera Pero Vaz de Caminha, o texto do
Piloto Anônimo afirma que houve vista de terra no dia 24 de abril (Cf.
OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 30). O texto apresenta a sua versão da história
descrevendo os aspectos físicos dos índios – “gente parda, bem disposta, com
cabelos compridos; andavam todos nus sem vergonha alguma, e cada um deles
trazia seu arco com frechas” –, a barreira linguística nos primeiros contatos –
“não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem”, os índios “não se
entendiam por falas, nem mesmo por acenos” – e o comportamento dos indígenas
durante a realização de uma missa – eles “bailavam e tangiam nos seus
instrumentos”. O texto ainda apresenta informações a respeito da fauna e da
flora locais, tecendo elogios às riquezas naturais do lugar – os papagaios, o
inhame, as árvores, a abundância de água, etc. (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p.
30-31).
Em seguida, o texto do Piloto Anônimo
apresenta mais uma informação interessante: “Nos dias que aqui estivemos,
determinou Pedro Álvares Cabral fazer saber ao nosso Sereníssimo Rei o
descobrimento desta terra, e deixar nela dois homens condenados à morte, que
trazíamos na armada para este efeito; e assim despachou um navio que vinha em nossa
conserva carregado de mantimentos, além dos doze sobreditos, o qual trouxe a
el-rei as cartas em que se continha tudo quanto tínhamos visto e descoberto.
Despachado o navio, saiu o capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira
muito grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dois degredados
neste mesmo lugar, os quais começaram a chorar, e foram animados pelos naturais
do país, que mostravam ter piedade deles” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 32).
O relato então descreve a partida da frota
de Cabral daquela região e a posterior viagem em direção ao oriente, em uma
narrativa que é marcada pelas descrições dos perigos aos quais aqueles homens
estavam submetidos: “o mar embraveceu-se por maneira tal que parecia
levantar-nos ao céu, até que o vento se mudou de repente, e posto que a
tempestade ainda era tão forte que não nos atrevíamos a largar as velas, ainda
assim, navegando sem elas, perdemo-nos uns dos outros, de modo que a capitaina
com duas outras naus tomaram um rumo, outra chamada ‘El-Rei’ com mais duas
tomaram outro, e as que restavam ainda outro, e assim passamos esta tempestade
vinte dias consecutivos sempre em árvore seca, até que aos 16 do mês de junho
houvemos vista da terra da Arábia, onde surgimos, e chegados à costa pudemos fazer
uma boa pescaria” (Cf. OLIVIERI; VILLA, 2006, p. 33).
Naquele tempo, lançar-se ao mar sem o
conhecimento e as tecnologias que temos hoje era uma aventura cheia de riscos,
e muitos morreram durante as grandes navegações. Posto isso, é preciso dizer que
os contatos entre os navegadores europeus e os povos que viviam no continente
americano se deram a partir de uma conjuntura muito específica. Encontrando os
mais diferentes povos em solo americano, portadores de costumes até então
desconhecidos na Europa, os europeus que aqui chegaram lançaram muitas vezes um
olhar etnocêntrico sobre as populações indígenas.
Ver o outro como inferior ajudava a
justificar a conquista do território, a dominação, a cristianização e, não
tardou a demorar, também o extermínio dos índios. O homem europeu, ao se
considerar superior, sentia-se no direito de explorar o continente americano.
No contato entre as diferentes culturas, os navegadores vindos da Europa não
puderam deixar de estranhar e condenar certos hábitos indígenas. Por outro
lado, a postura de um homem como Jean de Léry, como se viu, nos mostra que
havia quem estivesse disposto a entender melhor o modo de vida das pessoas que
habitavam a América antes da chegada dos europeus a partir do final do século
XV.
O que se pode concluir a partir dos
relatos de alguns cronistas das grandes navegações aqui brevemente analisados é
que a relação com o “outro”, com aquele que nos é diferente, é quase sempre
marcada por dificuldades e pelo estranhamento. Contudo, compreender melhor o
outro e sua forma de ver o mundo é um exercício importante, ainda mais quando
se vive em um mundo que ainda apresenta tantos preconceitos e formas de
intolerância como é o nosso mundo de hoje.
Desse ponto de vista, estudar como foram
os contatos entre os europeus e os indígenas, bem como refletir acerca da
maneira pela qual os homens do Velho Mundo lidavam com as diferenças no século
XVI, pode nos auxiliar a pensar nas formas como nós, hoje em dia, lidamos com
as diferenças culturais. Nessa perspectiva, cronistas como Colombo, Caminha,
Thevet, Léry e Staden ainda têm muito a nos ensinar.
Bibliografia
CAMINHA,
Pero Vaz de. Carta do achamento do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA,
Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática,
2006, p. 19-25.
COLOMBO,
Cristovão. Diários da descoberta da América: as quatro viagens e o testamento.
Porto Alegre: L&PM, 1991.
LÉRY,
Jean de. Viagem à terra do Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco
Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p.
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OLIVIERI,
Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3.
ed. São Paulo: Ática, 2006.
STADEN,
Hans. Viagem ao Brasil. In: OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio
(Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 85-89.
THEVET,
André. As singularidades da França Antártica. In: OLIVIERI, Antonio Carlos;
VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. 3. ed. São Paulo:
Ática, 2006, p. 59-65.