Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

segunda-feira, 12 de maio de 2014

A Formação dos Estados Nacionais na América Espanhola

Durante as guerras napoleônicas, Fernando VII foi destronado, o que provocou o desmembramento do império espanhol a partir do episódio do "trono vazio". Nas colônias da América espanhola, os criollos declararam a igualdade política entre os dois continentes, ou seja, a ideia de que não deveria haver relação de  dominação entre os reinos localizados na América e os reinos peninsulares; com o "vazio de  poder" cada pueblo e cada cidade assumiu a sua soberania.

A formação dos Estados Nacionais na América espanhola deve ser entendida dentro deste contexto. Em primeiro lugar, cabe perguntar: o que é "nação"? Podemos dizer que existem ao menos duas concepções de "nação": a) Nação como uma unidade política (leis, comunidade autogovernada); b) Nação como uma unidade cultural (comunidade de pessoas com um passado e uma história comuns, identidade cultural coletiva baseada em língua, religião, costumes e particularidade étnica compartilhados) (Cf. GUERRA, 1994).

Os territórios colonizados pela Espanha na América faziam parte da monarquia espanhola, um conjunto plural de diversas áreas que estavam sob o governo de um soberano em comum. Contudo, é preciso lembrar que os espanhóis tentaram reproduzir na América a estrutura política castelhana, na qual a cidade precede a todas as demais unidades políticas. Neste quadro, a identificação entre um indivíduo e uma comunidade mais ampla se dava a partir do pueblo, da vila, da cidade, ou seja, da comunidade mais próxima à qual o sujeito pertencia. Ademais, os territórios localizados em solo americano eram vistos como um conjunto diferente dos reinos peninsulares (da península ibérica, ligados a Castela), ou seja, a "monarquia espanhola" tinha dois pilares: um americano e outro europeu. No século XVIII, as elites da península ibérica começaram a se referir  aos territórios da América espanhola como "colônias", e não mais como "reinos", o que desagradou habitantes do continente americano. Já a partir do século XIX, começou a se falar em espanhóis europeus e espanhóis americanos, o que deixava subentendida uma ideia de separação entre os dois pilares da "monarquia espanhola".

De acordo com François-Xavier Guerra, o fundamento das nações independentes latino-americanas foi político e não cultural. Dito de outra forma, apesar dos diversos territórios da América espanhola terem traços culturais em comum (a língua, a religião católica), não se formou um grande e único Estado-Nação na América hispânica mas sim vários porque foi mais importante a identidade política local (ligada ao pueblo, à cidade). Ainda de acordo com Guerra, essa foi a "exceção americana", uma vez que na Europa do século XIX o fundamento dos Estados Nacionais foi cultural. Francisco Colom (ver bibliografia) complementa dizendo que, principalmente no início dos processos de independência, os movimentos de luta foram dispersos, simultâneos e sem muita coordenação entre si exatamente por conta do papel da identidade política de nível mais local/restrito.

Um exemplo da dispersão existente no processo das independências pode ser visto na ocorrência de  diversas guerras, mesmo porque havia em solo americano pessoas que se opunham à  separação em relação à metrópole. Também na formação dos Estados Nacionais na América hispânica houve a ocorrência de conflitos, uma vez que tais Estados não surgiram rapidamente, já prontos e acabados, mas a partir de  diversos conflitos. John Lynch (1984) analisa este tema destacando não só o surgimento de uma nacionalidade criolla, ou seja, o sentimento de que os americanos não eram espanhóis, mas também o aparecimento de uma série de diferenciações entre os próprios americanos (mexicanos, chilenos, argentinos, etc.). Tal fato chama a atenção para o papel da identidade política de nível mais local/restrito neste processo de formação dos Estados Nacionais latino-americanos. Ademais, ainda segundo Lynch, foram importantes neste contexto os caudillos, chefes políticos locais que normalmente eram latifundiários e exerciam grande poder a nível regional, comandando verdadeiros exércitos particulares, estabelecendo relações de lealdade com outras pessoas (fossem elas "peões" ou outros proprietários de terras) a partir de trocas de favores. No caudilhismo havia grupos armados compostos por patrões e clientes e marcados por relações pessoais de dominação e submissão, onde o objetivo era obter riquezas por meio das armas (violência e pilhagem). Segundo a análise de Lynch, os caudillos foram um obstáculo ao estabelecimento de Estados fortemente centralizados, uma vez que eles representavam um poder mais local/regional. Por outro lado, eles também desempenharam um papel na própria constituição dos Estados Nacionais latino-americanos, uma vez que combatiam a presença de estrangeiros.

A partir de  todo este cenário conturbado, repleto de conflitos, a consolidação dos diversos Estados Nacionais exigiu a construção de símbolos nacionais e mecanismos de identificação coletiva. Segundo Hans-Joachim König (1984), a necessidade de desenvolver na população um sentimento de identidade para que os cidadãos reconhecessem a legitimidade de determinado Estado foi atendida por meio de escolas, ritos (festas religiosas), símbolos (a bandeira, o hino) e a valorização da figura do índio, personagem este que passou a ser visto agora não mais como selvagem, mas como um pobre homem digno de lástima e compaixão por ter sofrido tanto com a colonização espanhola. Após as independências, em vários dos novos Estados o índio se tornou o símbolo do passado nacional, mesmo que apenas algumas de suas características fossem valorizadas, e não todas. A noção de propriedade comum da terra, por exemplo, que era tão cara a diversas populações indígenas, foi simplesmente "esquecida" pelas camadas mais abastadas dos novos Estados Nacionais.

Os Estados Nacionais latino-americanos no contexto do pós-independência viram a desintegração do sistema comercial colonial (marcado pelo monopólio comercial por parte da metrópole), passando a vivenciar o domínio comercial dos  produtos ingleses (que competiam agressivamente com os produtos feitos localmente), bem como o estabelecimento de relações comerciais com outros países, tais como Estados Unidos, França, Sardenha, Portugal, etc. A concorrência com os produtos ingleses e a instabilidade política gerada a partir dos processos de independência produziram dificuldades econômicas nos novos Estados Nacionais latino-americanos, que tiveram que enfrentar balança comercial desfavorável e problemas com as exportações  durante um bom tempo. Com o passar dos anos, houve não só a decadência da mineração em várias regiões, mas também o desenvolvimento, por outro lado,  da pecuária (couro, charque, sebo, etc.), a ampliação do trabalho assalariado e a exportação de produtos como fumo, cacau, café e cana-de-açúcar. Consolidou-se assim a posição periférica da América Latina na economia mundial, com crescimento industrial lento e exportação basicamente de produtos agrícolas. Os criollos, por sua vez, conseguiram ocupar importantes cargos burocráticos no governo e na política. Já os índios  tiveram suas terras invadidas.

Já a partir do século XIX os Estados Nacionais latino-americanos há pouco tempo formados passaram pelo chamado processo de "modernização". Algumas noções importantes neste contexto eram as seguintes: Mundo Moderno, Modernidade, Desenvolvimento, Progresso, Mudança, Capitalismo, Revolução Industrial, Revolução Americana, Revolução Francesa, Divisão do Trabalho, Individualismo, Urbanização, Sociedade de Massas, etc. Julio Pinto Vallejos (2000) observa que a modernização não representou a mesma coisa para todos, pois, para uns ela significou progresso, mas para outros ela representou a perda de referenciais e tradições. O Estado e o Mercado (na figura da Empresa) se apresentaram como os principais agentes da modernização. Na América Latina, o Estado modernizador dispensou a certos segmentos da sociedade um tratamento marcado apenas por maiores impostos, crescente vigilância policial, regulamentação da vida e dos espaços cotidianos, recrutamento militar obrigatório, desprezo de certos costumes, etc. A partir disso, na passagem do século XIX para o século XX houve uma série de conflitos e "lutas pela modernidade" entre grupos diferentes e com distintos horizontes  de  expectativa.

Ainda no que diz respeito à modernização, foi importante no século XIX latino-americano a presença do positivismo, sobretudo dentro de um cenário marcado pela consciência de "atraso" da América Latina em comparação a outros países. Por meio dos ideais de  ordem e progresso, o positivismo representou à época a possibilidade de conciliação entre conservadores (admiradores da ordem) e liberais (que desejavam o progresso).

História e Literatura: a obra Facundo (1845), de Domingo  Faustino Sarmiento. O livro é uma biografia do caudilho Facundo Quiroga (1788-1835). O projeto modernizador de Sarmiento. As noções de "Civilização" e "Barbárie". A estrutura narrativa marcada por antagonismos:
            - orgulho pela "argentinidade" X admiração pela cultura europeia
            - apologia da cidade X canto das virtudes do campo
            - crítica do caudilhismo X o caráter providencial do caudilhismo
            - elogio da modernidade X deslumbramento com a tradição


Como foi dito acima, os Estados Nacionais na América Latina foram formados a partir de um conturbado processo de independências que envolveu as diversas identidades políticas locais/regionais. Se levarmos em  conta a reflexão de Benedict Anderson (2008), segundo a qual a nação é uma  "comunidade política imaginada" como "limitada" (tem fronteiras) e "soberana", é possível relacionar as independências no Império Hispano-Americano e a formação de vários Estados Nacionais na América Latina por meio do papel desempenhado exatamente pela identidade política local/regional. Segundo o próprio Anderson, cada novo país independente, sobretudo na América do Sul, correspondia a uma unidade  administrativa que existia desde o período colonial. De fato, nos tempos da colonização (tendo em vista o tamanho do território, a variedade de solos e climas, a dificuldade de comunicação e o rígido controle de Madri sobre a política comercial) não houve durante um bom tempo muitas relações entre as diversas unidades administrativas da América espanhola, e cada uma teve um desenvolvimento autônomo em relação às outras. A imprensa, por exemplo, publicava geralmente apenas notícias da região mais próxima, contribuindo para a construção de um sentimento de identidade local, de pertencimento a uma determinada comunidade.

Para finalizar: os processos de independência na América espanhola foram marcados pela presença de ideias liberais (como pode ser visto em panfletos, livros, memórias, discursos e jornais da época, marcados por uma crença na razão, pela centralidade do indivíduo na história, e pelos direitos naturais à liberdade, à igualdade jurídica e à propriedade privada). Contudo, com o desenrolar das independências e a formação dos Estados Nacionais, em meio a guerras e conflitos, houve a desilusão de muitos em relação ao estado de coisas que se implantou na América Latina (os problemas sociais, o "atraso" em relação a outros povos, etc.).


Bibliografia:

ANDERLE, Adám. El Positivismo y la Modernización de la Identidad Nacional en América Latina. In: Anuario de Estudios Americanos, n. XLV, Sevilla, 1988.

ANDERSON, Benedict R. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do  nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

COLOM, Francisco. El Trono Vacío: la imaginación política y la crisis colonial de la monarquia hispánica.

DONGHI, Túlio H. A economia e a sociedade na América Espanhola do pós-independência. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: da independência a 1870. Tradução de Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre  de Gusmão, 2001, p. 277-327. vol. 3.

GUERRA, François-Xavier. Identidades e Independencia: la excepcion americana. In: AHILA - Asociación de Historiadores Latinoamericanistas Europeus. Cuadernos, n. 2. Imaginar la Nación. Paris, 1994.

KÖNIG, Hans-Joachim. Simbolos nacionales y retorica politica en la independencia: el caso de la Nueva Granada. In: BUISSON, Inge; KAHLE, Günter; KÖNIG, Hans-Joachim; PIETSCHMANN, Horst. Problemas de la Formación del Estado y de la nación en Hispanoamérica. Bonn: Inter Nationes, 1984, p. 389-405.

LYNCH, John. Los Caudillos de la Independencia: enemigos y agentes del Estado-Nación. In: BUISSON, Inge; KAHLE, Günter; KÖNIG, Hans-Joachim; PIETSCHMANN, Horst. Problemas de la Formación del Estado y de la nación en Hispanoamérica. Bonn: Inter Nationes, 1984, p. 197-218.

MITRE, Antonio. O dilema do centauro: ensaios de teoria da história e pensamento latino-americano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

PRADO, M. L. C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: EDUSP, 2004.

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo. Tradução de Sergio Alcides. São Paulo: Cosac Naify, [S. d.].

VALLEJOS, Julio Pinto. De proyectos y desarraigos: la sociedad latinoamericana frente a la experiência  de la modernidad (1780-1914). Trabalho apresentado no 19th. International Congress of Historical Sciences. University of  Oslo, 6-13 Ago. 2000.