* Texto originalmente escrito por Adriana Romeiro [1] e publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional.
O
episódio é famoso. Bandeirantes paulistas descobrem enormes jazidas de ouro na
região de Minas Gerais e reclamam exclusividade em sua exploração. Os achados
atraem muitos portugueses e pessoas de todas as partes do Brasil. Esses
forasteiros são pejorativamente chamados de “emboabas” – para alguns, a palavra
designava o indivíduo que cobria as pernas para protegê-las dos perigos dos
sertões. As tensões entre os dois grupos culminam em um conflito armado que
ficou conhecido como Guerra dos Emboabas. Há exatos 300 anos.
O
confronto entre paulistas e emboabas já foi tema de um sem-número de livros e
estudos. No entanto, pouco se avançou no conhecimento do episódio. Ao longo dos
anos, houve um debate acalorado e polarizado que nada mais fez do que mascarar
as reais motivações da guerra. Ao contrário do que se defendeu por muito tempo,
o fato é que nem os bandeirantes nem os emboabas eram movidos pelo amor à
terra.
O
levante emboaba entraria para os anais da história mineira e para a memória
local como o evento mais formidável das origens da capitania. Prova disso é o
poema épico “Vila Rica”, no qual Manuel da Costa narra o nascimento da vila
mineira partindo do conflito entre paulistas e emboabas:
“Levados
de fervor, que o peito encerra
Vê
os Paulistas, animosa gente,
Que
ao Rei procuram o metal luzente
Co’as
próprias mãos enriquecer o erário.”
Mas
ainda no século XIX deixa de ser um conflito local em torno da posse das minas
de ouro para se tornar um capítulo memorável na biografia da jovem nação. Na
pena de historiadores como Affonso de E. Taunay, J. Soares de Mello, Capistrano
de Abreu e Isaías Golgher, a Guerra dos Emboabas ganha grandes proporções e se
transforma em uma luta sangrenta e implacável do povo brasileiro em nome da
liberdade contra o domínio tirânico da metrópole.
Esse
tipo de interpretação floresceu em torno do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), preocupado em estudar e valorizar os processos que levaram à
independência do país. Ao cunhar a expressão “revoltas nativistas”, aqueles historiadores
pretendiam designar os conflitos coloniais marcados por um incipiente
sentimento nacionalista. Mas, ao contrário de outros episódios do gênero – como
a Revolta de Beckman, a Guerra dos Mascates, o Motim do Maneta e a Revolta de
Vila Rica –, a Guerra dos Emboabas apresentava uma dificuldade: qual era,
afinal, o grupo social imbuído desse caráter autonomista ou nacionalista? Quem
seriam os verdadeiros defensores da causa nacional? A questão ainda dividia a
historiografia no século XX: de um lado ficaram os partidários dos paulistas;
de outro, os dos emboabas.
Os
pró-paulistas, engajados na exaltação da figura do bandeirante, dominaram os
estudos sobre a Guerra dos Emboabas entre os anos 1920 e 1940. Para autores
como Alfredo Ellis Júnior, Teodoro Sampaio e Taunay, o episódio foi, antes de
tudo, o “noviciado da liberdade para a terra de Santa Cruz”. Os homens do
Planalto de Piratininga seriam os legítimos representantes da nação brasileira,
os defensores da pátria contra a cobiça de Portugal.
Apesar
de dominante, essa não foi a única interpretação a respeito do conflito. Em uma
chave oposta, outra corrente historiográfica defendeu uma interpretação
inteiramente oposta: identificavam na causa emboaba as sementes do sentimento
nacional. Seus argumentos: os rebelados aclamaram Nunes Viana como governador
local, em franca desobediência à Coroa portuguesa.
O
ato seria uma afirmação de projeto autonomista, pondo em xeque o domínio
metropolitano. O historiador Isaías Golgher, russo radicado em Belo Horizonte, é
o grande defensor desta tese. Para ele, a Guerra dos Emboabas foi “a primeira
guerra civil nas Américas”, um movimento de resistência que culminaria mais
tarde com Tiradentes.
Mas,
afinal, quem tem razão? Teriam sido os emboabas os precursores da liberdade
contra o domínio metropolitano, como quis Golgher? Não exatamente. Desde o
início do conflito, o partido emboaba se apresentou como representante legítimo
dos interesses de Portugal contra a turba de paulistas insubmissos e rebeldes.
Inspirados no exemplo de Portugal sob o domínio da Espanha entre os anos de
1580 e 1640, os emboabas comparavam a libertação das Minas Gerais com a
Restauração lusitana. Segundo eles, em ambos os casos era o povo português que
se insurgia contra a opressão em nome da liberdade.
É
revelador, por exemplo, o fato de o Conselho Ultramarino, órgão responsável
pela administração colonial, ter simpatizado com a luta dos emboabas. O
governador Antônio de Albuquerque, enviado para promover a pacificação dos
sertões, chegou a ser orientado para que fosse em tudo favorável aos emboabas.
E assim, apesar de Nunes Viana ter deixado seu cargo, a grande maioria dos
emboabas foi mantida em seus postos. Em 1709, a geração heroica dos
descobridores paulistas abandonaria a cena mineira para buscar ouro nos sertões
de Goiás e Mato Grosso.
Seriam
então os paulistas os precursores da Independência brasileira? Também não é bem
isso. Apesar da força avassaladora das interpretações tradicionais, os
paulistas não nutriam um ódio especial pelos portugueses. Para eles, emboaba
era, sobretudo, o forasteiro, fosse ele carioca, pernambucano, baiano ou
português. Tampouco se bateram por um ideal de libertação nacional ou pela
contestação da opressão metropolitana. O que estava realmente em jogo era a
convicção de que, como responsáveis pela descoberta e pelo povoamento dos
sertões, eles mereciam privilégios e prerrogativas especiais na administração
da região.
Para
se ter uma ideia, em 1705, quando a supremacia política dos paulistas começava
a se enfraquecer ante o avanço dos forasteiros, o prestigiado sertanista Garcia
Rodrigues Pais chegou a escrever ao rei implorando, em tom ressentido, que os
cargos ficassem nas mãos de seus patrícios. Pouco antes, a Câmara da Vila de
São Paulo também se dirigira ao rei para pedir o monopólio das terras a serem
repartidas na região mineradora.
Os
paulistas reivindicavam mesmo era o controle político. Não porque fossem
vassalos rebeldes em luta contra o poder metropolitano, mas pelo chamado
“direito de conquista”, uma noção jurídica tradicional do Antigo Regime
português, que assegurava aos descobridores um tratamento privilegiado por
parte da Coroa.
Entre
uma e outra versão, o que se percebe é que muito do que se escreveu até
recentemente sobre a guerra deriva quase exclusivamente das interpretações
divulgadas por paulistas e emboabas ainda no século XVIII. Assim foram se
perpetuando as acusações de lusofobia da parte dos paulistas e as alegações de
que os emboabas seriam movidos pela cobiça desenfreada. Ambas as visões são pra
lá de parciais e tendenciosas, o que acabou polarizando o conflito.
O
que se pode concluir de tanta discórdia é que, na verdade, a Guerra dos
Emboabas não foi, de modo algum, uma revolta nativista. Ponto final. Mesmo se
restringirmos o conceito de nativismo à acepção corrente no século XVIII, isto
é, de sentimento de amor à pátria, ainda assim a palavra não se aplica ao
conflito. Nem paulistas nem emboabas pareciam movidos pela afeição à terra. O
aprisionamento do conflito nesse rótulo nativista impediu gerações de
historiadores de perceberem que, por trás das divergências entre os dois
grupos, o que existia na época era uma cultura política peculiar. Uma política
herdeira tanto das doutrinas que no século anterior tinham legitimado a
insurreição de Portugal contra o domínio espanhol quanto do conturbado processo
de negociação entre os descobridores e a Coroa em torno da exploração das
riquezas minerais.
Paulistas
e emboabas eram todos igualmente forasteiros numa terra recém-descoberta.
Juntos formavam uma multidão de 50 mil pessoas que fervilhavam à beira dos rios
e caminhos, nos sertões distantes e inóspitos, e disputavam lado a lado as
lavras e datas minerais. E ali, em meio a essa “multidão vaga e tumultuária”,
no dizer dos contemporâneos, confluíam valores e concepções políticas forjados
em experiências históricas muito diferentes.
Como
bem sabiam os observadores, a guerra era tão-somente uma questão de tempo...
“Os
que não aprendem com a História, vão cometer sempre os mesmos erros”.
[1] ADRIANA
ROMEIRO É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS E AUTORA DO LIVRO
PAULISTAS E EMBOABAS NO CORAÇÃO DAS MINAS: IDÉIAS, PRÁTICAS E IMAGINÁRIO
POLÍTICO NO SÉCULO XVIII (UFMG, 2008).
Em
busca do ouro
A
Guerra dos Emboabas foi um confronto travado entre 1708 e 1709 pelo direito de
exploração das recém-descobertas jazidas de ouro no sertão das Minas Gerais.
Responsáveis pelos achados, os paulistas se instalaram na incipiente estrutura
administrativa ali montada e reivindicaram o direito exclusivo de exploração. No
entanto, logo que a notícia da descoberta se espalhou, milhares de pessoas
migraram para a região, ficando pejorativamente conhecidas como emboabas, em
referência às aves de mesmo nome. O aumento considerável do contingente de
forasteiros desequilibrou a frágil balança dos poderes locais, ameaçando o
domínio dos paulistas.
O
conflito armado constitui o ápice de uma longa série de pequenos incidentes. Em
outubro de 1708, os emboabas iniciam o levante com um ataque de surpresa ao
arraial do Sabará sob o comando de Manuel Nunes Viana. Português de origem
humilde, Nunes Viana seria logo aclamado governador. Uma afronta direta à
Coroa, já que a região estava sob a jurisdição do governador do Rio de Janeiro,
D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Ademais, a escolha dos
governantes era prerrogativa do rei. Em agosto de 1709, menos de um ano depois
do início do conflito, D. Antônio de Albuquerque, recém-nomeado governador do
Rio de Janeiro, pisa em solo mineiro determinado a pôr fim à guerra. Ao
contrário do seu antecessor, que havia tentado apaziguar os ânimos mas acabou
sendo expulso e ameaçado de morte, Albuquerque alcança um êxito surpreendente.
Ele destitui Nunes Viana, mas conserva a composição da estrutura administrativa
emboaba. No fim, a guerra se encarregou de afastar os paulistas da região,
abrindo caminho para a adoção de um novo projeto político.
Saiba
Mais - Bibliografia:
GOLGHER, Isaías. Guerra dos Emboabas: a primeira guerra civil nas Américas. 2a. edição. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1982.
MELLO,
J. Soares de. Emboabas: crônica de uma revolução nativista – documentos
inéditos. São Paulo: São Paulo Editora, 1929.
SUANNES,
S. Os emboabas. São Paulo: Brasiliense, 1959.