(*) Este texto foi escrito por Flávio José
Gomes Cabral [1] e foi
originalmente publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional,
no dia 2 jan. 2012.
Um
estrondo vindo das bandas da Rua das Águas Verdes deixou os recifenses
assustados naquele cair de tarde do dia 17 de outubro de 1710. Pelo barulho,
tratava‐se de um disparo de arma de fogo. De boca em
boca soube‐se que o governador Sebastião de Castro e
Caldas (?‐1713) fora vítima de uma emboscada. Ele passava
por ali em companhia de várias pessoas, vindo da Igreja de Nossa Senhora da
Penha em direção à residência governamental no Palácio das Torres, antiga
mansão construída pelo conde Maurício de Nassau (1604‐1679).
As
notícias sobre os disparos correram velozmente, quase sempre contadas com certo
exagero. Não faltaram as que anunciavam a morte do governador. Na hora em que
foi alvejado, ele teria visto um vulto na janela de uma casa e saíra em seu
encalço, espadim na mão, mas tudo fora em vão, pois seu algoz e mais dois
companheiros conseguiram escapar se embrenhando entre os manguezais atrás do Convento
de Nossa Senhora do Carmo, alcançando em seguida a Ilha de Joana Bezerra.
Figura 1.: Na obra de Frans Post, cena do cotidiano em
Recife no século XVII.
Castro
e Caldas foi conduzido às pressas ao palácio, sob cuidados médicos. Foram
feitas rondas, sem qualquer resultado. A opinião nas ruas ficou dividida. Os
que nutriam simpatia pelo governador achavam que, ainda que ele “fosse um
Herodes, nunca os vassalos Del‐Rei, de quem os
governadores são lugares‐tenentes, podiam ter liberdade para ação
semelhante”. E foram mais longe ao suspeitarem que membros das famílias Bezerra
e Cavalcanti, ligadas às atividades açucareiras, eram os mandantes do crime.
Contra
essa opinião, vozes se levantaram acusando o governador de ter simulado o
próprio atentado para incriminar a nobreza da terra – as famílias envolvidas
com a produção agroexportadora em Pernambuco. Na verdade, Castro e Caldas vinha
se indispondo com a elite açucareira, acusado de ser despótico e de utilizar o
cargo para favorecer amigos. As relações já estavam muito tensas em princípios
de 1710, quando, para desconsolo dos olindenses, ele se posicionou a favor dos
mercadores recifenses, ditos mascates, que lutavam pela autonomia do Recife
havia bastante tempo.
Toda
essa insatisfação chegava ao ponto extremo devido à rivalidade entre a cidade
de Olinda, que era a capital da capitania e controlada pelos senhores de
engenho, e o povoado do Recife, que se transformara em importante centro
mercantil depois da saída dos holandeses em 1654, superando a capital. Para
inflamar os ânimos, os negócios da nobreza vinham diminuindo devido à queda do
preço do açúcar, obrigando‐a a recorrer aos empréstimos
oferecidos pelos mascates, que pouco a pouco passavam a controlar a economia
local. Mesmo sendo o Recife um importante centro econômico, dependia
politicamente da vizinha Olinda, onde estava a Câmara Municipal. Indignados com
a falta de espaço na política, os mascates, interessados em estabelecer a sede
da administração da capitania no povoado, lutaram perante o monarca para
separar o Recife de Olinda, pretensão que foi atendida pela carta régia de 19
de novembro de 1709, de D. João V, que elevava o Recife à categoria de vila.
Com esse novo status, os moradores passaram a ter direitos políticos e a
negociar com o rei sem a interferência dos senhores de engenho encastelados em
Olinda.
Na
realidade, a emancipação do Recife representava, entre outras coisas, a
diminuição do alcance dos tributos cobrados pela Câmara olindense, que se via
agora privada de importante fonte de receitas. A Câmara se recusou a registrar
a carta régia em seus livros e pressionou o governador Sebastião de Castro e
Caldas a não acatá‐la. Visivelmente se posicionando ao lado dos
mascates, o governador não atendeu aos desejos da Câmara e mandou providenciar
a festa de instalação da nova vila, que ocorreu em grande estilo no dia 15 de
fevereiro de 1710. O ponto alto das comemorações foi a inauguração do
pelourinho, símbolo do poder municipal, erguido em frente à Matriz do Corpo
Santo.
Desse
momento em diante, a elite açucareira de Olinda, indignada, passou a conspirar
para depor o governante. O atentado da Rua das Águas Verdes representou, na
prática, uma tentativa frustrada de um desses planos. Aliás, não seria a
primeira vez que a elite pernambucana depunha um governador. Em 1666, Jerônimo
de Mendonça Furtado, conhecido como Xumbergas, foi vítima de uma conspiração
que terminou com sua prisão e expulsão da capitania.
Castro
e Caldas tinha conhecimento dessas armações, e informava essas tramas ao rei.
Por isso procurou andar acompanhado de grande séquito, como aquele que tinha a
seu lado quando foi baleado. A escolha do local do atentado tinha sido bastante
pensada, uma vez que a área ficava na periferia recifense, o que facilitaria a
fuga dos atiradores. O plano, conforme asseverou o médico Manoel dos Santos,
que cuidou do convalescente e posteriormente descreveria em livro os episódios,
supunha que, morto o governante, Recife seria sitiado pelas milícias comandadas
pela nobreza açucareira. Sua Câmara seria tomada e os funcionários demitidos,
voltando o poder, como antigamente, para Olinda. Comentou‐se
que as casas de negócio dos mascates seriam saqueadas e os livros contábeis
destruídos, apagando vestígios das dívidas dos senhores de engenho. Nesse
momento, os insurgentes aguardariam que D. João V revogasse a carta régia que
criou a municipalidade recifense.
O
governador não perdeu o ânimo de agarrar os criminosos, mandando prender vários
suspeitos, e chegou a oferecer um prêmio no valor de 400 mil réis para quem os
denunciasse e, caso fosse escravo, promessa de alforria. A nobreza não se deu
por vencida e procurou não perder terreno, organizando no interior um movimento
destinado a derrubá‐lo. No dia 6 de novembro de 1710, o assunto nas
ruas do Recife dava conta de que 10.000 homens armados, incluindo índios com
seus arcos e flechas, gritando palavras de ordem de “viva o rei e morra o
governador!”, haviam acampado nos arredores. Castro e Caldas procurou negociar
um acordo com os insurgentes, e como não tinha homens suficientes para se
defender, fugiu na madrugada do dia 7 de novembro para a Bahia.
Com
a evasão do governador, o bispo D. Manuel Álvares da Costa (1651‐1733)
assumiu provisoriamente a governadoria até a chegada do substituto, Félix José
Machado de Mendonça e Vasconcelos (1677‐1731). Olinda festejou
a saída de Castro e Caldas. Por suas ladeiras desfilou um boneco representando
o fugitivo, enxovalhado e ridicularizado pelos passantes à semelhança do Judas
que aparece no sábado de Aleluia. O fato é curioso porque naquela sociedade
tradicional, na qual o respeito ao monarca era coisa sublime, a “festa de
Judas” se constituiu em ato desrespeitoso, pois os governadores representavam o
rei, que representava Deus.
Todos
esses incidentes, que desembocariam na Guerra dos Mascates (1710‐1711),
mereceram consideração das autoridades de além‐mar, e mesmo a Coroa
entendendo que tudo não passara de brigas locais, sem deslealdade, era preciso
vigiar os súditos da América portuguesa e evitar que seus intentos rebeldes
pusessem em xeque a ordem estabelecida. Este teria sido o recado trazido pela
maioria dos governadores nomeados para as terras brasileiras. Apesar de todas
essas precauções, não se conseguiu pôr fim às insatisfações brotadas em forma
de conspirações e protestos, demonstrando que os vassalos do rei não eram tão
submissos assim.
[1] Flavio José Gomes
Cabral é professor da Universidade Católica de Pernambuco e autor de Paraíso
terreal: a Rebelião Sebastianista na Serra do Rodeador. Pernambuco, 1820
(Annablume, 2004).
Saiba
Mais ‐ Bibliografia
COSTA,
F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos. 2ª ed. Recife: Fundarpe, 1984.
MELLO,
Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates – Pernambuco,
1666‐1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, Manoel dos.
Calamidades de Pernambuco. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife,
1986.