Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Pernambuco Dividida*

* Este texto foi escrito por George F. Cabral de Souza [1] e publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, no dia 24 jan. 2011.

Figura 1.: Planta da Vila do Recife, de autor desconhecido (cerca de 1760).

Para conseguir participação política no início do século XVIII, os comerciantes do Recife precisaram enfrentar um conflito civil. Até então, todos os mercadores do Brasil colonial eram excluídos das Câmaras Municipais, o centro do poder local. A disputa foi acirrada, mas os mascates conseguiram o que queriam. O feito era inédito, e três séculos depois esta vitória parece estar mais do que estabelecida. Nas eleições municipais de 2008, quem diria, o vereador mais votado de Olinda foi um vendedor ambulante: Mizael Prestamista conseguiu o voto de 5.300 eleitores. De fato, muita coisa mudou.

Durante quase 200 anos, a aristocracia açucareira pernambucana dominou a Câmara Municipal de Olinda, principal vila da capitania de Pernambuco. Isto acontecia com respaldo da legislação portuguesa. A contenda começou com a expulsão dos holandeses de Pernambuco. Durante a ocupação (1630‐1654), Recife passara de simples ancoradouro de Olinda a um grande centro urbano, ganhando importância. Com a saída dos invasores, formou‐se uma nova comunidade de mercadores. Vinham quase todos do norte de Portugal, para trabalhar como caixeiros ou se dedicavam ao pequeno comércio, e por isso eram chamados de mascates. Muitos deles enriqueceram, chegando a comprar engenhos e escravos.

Com a conquista do poder econômico, não é de espantar que começassem a querer também o poder político. O acesso à Câmara dos Vereadores significava a participação nas principais decisões locais. A instituição tinha múltiplos poderes, como definir valores de mercadorias e tributos, e funcionava ainda como tribunal de primeira instância.

O problema é que ela era controlada pela “nobreza da terra”, ou seja, os senhores de engenho que haviam se empenhado diretamente na luta contra os holandeses. Esse domínio se manteve durante muito tempo, sendo passado para seus descendentes. Quando os comerciantes começaram a cobiçar estes cargos, o clima azedou. Muitos dos senhores de engenho estavam endividados até as orelhas com os mascates. Ceder o mando político local aos seus credores lhes parecia um pesadelo.

Para repelir os comerciantes, os nobres recorreram às antigas e exigentes normas que definiam quem podia se candidatar aos cargos municipais. As eleições para vereador naquela época eram feitas de forma indireta. Votava‐se em um colégio eleitoral e este grupo indicava os nomes para os cargos cujos mandatos eram anuais. Tanto eleitores como eleitos tinham que ser “homens‐bons”, isto é, só podiam participar proprietários de terras e de escravos, que fossem bem‐nascidos. Isso excluía os mestiços, descendentes de judeus e cristãos‐novos (gente recentemente convertida ao cristianismo), e os que exerciam trabalhos manuais. Neste grupo estavam os sapateiros, pedreiros, carpinteiros ou pequenos comerciantes, com suas lidas de pesar, carregar e expor as mercadorias.

Quase todos os comerciantes portugueses no Recife tinham desempenhado trabalhos manuais ou eram filhos e netos de trabalhadores braçais. Além disso, a nobreza da terra alegava que, por só quererem o lucro, os mascates não eram adequados para gerir os assuntos públicos.

Os comerciantes continuaram pressionando por seus interesses, com um poder de barganha que não era pequeno. Entre os serviços que prestavam à Coroa portuguesa estava o empréstimo de recursos para aos cofres da monarquia. Em 1703, uma lei autorizou os grandes comerciantes a serem vereadores. Os mascates, isolados até então em cargos secundários, conseguiram se eleger para alguns dos cargos principais. Mas os nobres se recusavam a tomar posse, paralisando o trabalho da Câmara. Em 1706, a discussão entre dois vereadores sobre uma nomeação acabou em briga. Um nobre e um comerciante trocaram socos e pontapés na sala de reuniões da Câmara de Olinda.

Após muita reclamação de ambos os lados, em 1709 o rei D. João V (1706‐1750) elevou o Recife a vila, com uma Câmara própria. Com autonomia, a localidade não teria mais que disputar com Olinda o poder político.

A notícia chegou ao Recife em 5 de fevereiro de 1710, em meio a um ambiente bastante tenso. Nos meses que haviam decorrido, as desavenças entre mascates e nobres tinham se agravado. Em grande parte, isso acontecera por conta da atuação desastrada do governador da capitania na época, Sebastião de Castro e Caldas. Ele era abertamente partidário dos comerciantes, concedendo‐lhes benesses, prejudicando a nobreza da terra e praticamente transferindo a sede da governança para o Recife, o que tinha grande valor simbólico.

Temendo represálias, Castro e Caldas não divulgou de imediato a emancipação política do Recife; esperou dez dias. As pedras para a construção do novo pelourinho – coluna instalada em local público, símbolo da autonomia da municipalidade e local para castigo de escravos – foram preparadas em segredo. Mas o adiamento não resolveu a situação. O descontentamento da nobreza da terra levou o grupo a iniciar imediatamente sua reação: um atentado contra o governador e a derrubada da Câmara do Recife. Na noite de 17 de outubro, quando voltava de uma missa, Castro e Caldas foi alvejado por vários tiros. Ferido, o governador tentou em vão reprimir a sedição. Os contingentes reunidos por senhores de engenho conseguiram avançar para o Recife.

No dia 6 de novembro, cerca de três mil homens acamparam nas imediações de um Recife tomado pelo pânico. Testemunhos da época relatam que desde a invasão holandesa não se presenciava tanto desespero. Acuado, o governador fugiu para a Bahia. Com ele foram os mascates mais envolvidos nas manobras que levaram à criação da nova Câmara e os maiores credores dos senhores de engenho.

Figura 2.: Os mascates e seus servos, numa gravura de Chamberlain. Com seu crescente poder econômico, os comerciantes recifenses queriam participação no poder político municipal.

As autoridades que permaneceram na capitania conseguiram manter os ânimos sob controle. As milícias foram autorizadas a marchar pela vila. As fileiras mais numerosas entraram no dia 9, acompanhadas por religiosos encarregados de manter a ordem e coibir abusos. Nesse mesmo dia, 12 índios foram enviados ao pelourinho com a missão de destruí‐lo. Após derrubar a coluna, arrastaram pelas ruas a placa de bronze que materializava a autoridade municipal do Recife. Outras duas marchas menores foram feitas nos dois dias seguintes, e ao longo do trajeto os milicianos bradaram ofensas contra o Recife.

Por ordem régia de 1707, competia ao bispo D. Manuel Álvares da Costa assumir o governo. No entanto, ele estava na Paraíba em visita pastoral, e teve que sair de lá às pressas. Com a confusa situação, os líderes locais acharam melhor chegar a um consenso sobre quem deveria governar. Um grupo mais radical queria a proclamação de uma república controlada pela nobreza, nos moldes de Veneza (proposta pioneira no continente americano). Já os moderados defendiam a entrega do governo ao bispo. Depois de muito debate, a posição desses últimos prevaleceu.

D. Manuel Álvares da Costa governou Pernambuco durante 11 meses, controlado de perto pelos nobres. A nova Câmara foi fechada, seus papéis foram destruídos e seus oficiais, humilhados em praça pública. Em Lisboa, a notícia chegou no final de fevereiro de 1711, e o Conselho Ultramarino começou a preparar a punição ao levante. Um novo governador, Félix José Machado, foi nomeado e instruído a identificar e prender os cabeças da sedição dos nobres.

Enquanto isso, os mascates se articulavam para reagir. Tinham que garantir que o novo governador pudesse assumir. Em 18 de junho de 1711, tomaram as fortalezas do porto. A nobreza sitiou a vila com 1.500 homens e canhões retirados dos fortes litorâneos. Os mascates dispararam cerca de cinco mil projéteis contra os sitiantes, mas não conseguiram romper o cerco. As baixas somadas não chegaram a uma dezena, mas na vila houve escassez de comida e água potável. A população teve que comer mariscos com açúcar.

Em Pernambuco e nas capitanias vizinhas, a população se dividia entre apoiar Olinda ou Recife. Alguns senhores de engenho do sul de Pernambuco aderiram ao Recife, o que permitiu que a vila fosse abastecida pelo mar com provisões embarcadas em portos secundários. O impasse durou até o outubro de 1711, quando o novo governador chegou. Após delicadas negociações, os combatentes foram desmobilizados. Só então Félix Machado pode desembarcar e ser empossado. No início, agiu de forma aparentemente imparcial, mas quando a poeira baixou, pôs em prática um elaborado plano de repressão aos nobres da terra.

A Câmara do Recife voltou a funcionar em meados de novembro de 1711. Ao longo das décadas seguintes, surgiram vários pontos de atrito entre as duas municipalidades. Questões de jurisdição sobre a administração dos tributos alimentaram um conflito político crônico. De qualquer forma, o resultado da Guerra dos Mascates foi a entrada de um novo grupo social na esfera política. No século XXI, quando o vereador mais votado nas eleições locais foi um comerciante que diz ter orgulho do que faz, fica evidente o legado do conflito.

[1] GEORGE F. CABRAL DE SOUZA É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UFPE, PRESIDENTE DO INSTITUTO ARQUEOLÓGICO, HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PERNAMBUCANO e AUTOR DA TESE “ELITES Y EJERCICIO DE PODER EN EL BRASIL COLONIAL: LA CÁMARA MUNICIPAL DE RECIFE (17101822)”.


Saiba Mais ‐ Bibliografia

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisidição e Conflito. Aspectos da administração colonial em Pernambuco no século XVII. Recife: Ufpe, 1997.

MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos. Nobres contra mascates: Pernambuco, 16661715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Saiba Mais ‐ Documento

SANTOS, Manuel dos. Calamidades de Pernambuco. Editado por SILVA, Leonardo Dantas. Recife: FCCR, 1986.