* Este
texto foi escrito por George F. Cabral
de Souza [1] e publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional,
no dia 24 jan. 2011.
Para
conseguir participação política no início do século XVIII, os comerciantes do
Recife precisaram enfrentar um conflito civil. Até então, todos os mercadores
do Brasil colonial eram excluídos das Câmaras Municipais, o centro do poder
local. A disputa foi acirrada, mas os mascates conseguiram o que queriam. O
feito era inédito, e três séculos depois esta vitória parece estar mais do que
estabelecida. Nas eleições municipais de 2008, quem diria, o vereador mais
votado de Olinda foi um vendedor ambulante: Mizael Prestamista conseguiu o voto
de 5.300 eleitores. De fato, muita coisa mudou.
Durante
quase 200 anos, a aristocracia açucareira pernambucana dominou a Câmara
Municipal de Olinda, principal vila da capitania de Pernambuco. Isto acontecia
com respaldo da legislação portuguesa. A contenda começou com a expulsão dos
holandeses de Pernambuco. Durante a ocupação (1630‐1654),
Recife passara de simples ancoradouro de Olinda a um grande centro urbano,
ganhando importância. Com a saída dos invasores, formou‐se
uma nova comunidade de mercadores. Vinham quase todos do norte de Portugal,
para trabalhar como caixeiros ou se dedicavam ao pequeno comércio, e por isso
eram chamados de mascates. Muitos deles enriqueceram, chegando a comprar
engenhos e escravos.
Com
a conquista do poder econômico, não é de espantar que começassem a querer
também o poder político. O acesso à Câmara dos Vereadores significava a
participação nas principais decisões locais. A instituição tinha múltiplos
poderes, como definir valores de mercadorias e tributos, e funcionava ainda
como tribunal de primeira instância.
O
problema é que ela era controlada pela “nobreza da terra”, ou seja, os senhores
de engenho que haviam se empenhado diretamente na luta contra os holandeses.
Esse domínio se manteve durante muito tempo, sendo passado para seus
descendentes. Quando os comerciantes começaram a cobiçar estes cargos, o clima
azedou. Muitos dos senhores de engenho estavam endividados até as orelhas com
os mascates. Ceder o mando político local aos seus credores lhes parecia um
pesadelo.
Para
repelir os comerciantes, os nobres recorreram às antigas e exigentes normas que
definiam quem podia se candidatar aos cargos municipais. As eleições para
vereador naquela época eram feitas de forma indireta. Votava‐se
em um colégio eleitoral e este grupo indicava os nomes para os cargos cujos
mandatos eram anuais. Tanto eleitores como eleitos tinham que ser “homens‐bons”,
isto é, só podiam participar proprietários de terras e de escravos, que fossem
bem‐nascidos. Isso excluía os mestiços,
descendentes de judeus e cristãos‐novos (gente
recentemente convertida ao cristianismo), e os que exerciam trabalhos manuais.
Neste grupo estavam os sapateiros, pedreiros, carpinteiros ou pequenos
comerciantes, com suas lidas de pesar, carregar e expor as mercadorias.
Quase
todos os comerciantes portugueses no Recife tinham desempenhado trabalhos
manuais ou eram filhos e netos de trabalhadores braçais. Além disso, a nobreza
da terra alegava que, por só quererem o lucro, os mascates não eram adequados
para gerir os assuntos públicos.
Os
comerciantes continuaram pressionando por seus interesses, com um poder de
barganha que não era pequeno. Entre os serviços que prestavam à Coroa
portuguesa estava o empréstimo de recursos para aos cofres da monarquia. Em
1703, uma lei autorizou os grandes comerciantes a serem vereadores. Os
mascates, isolados até então em cargos secundários, conseguiram se eleger para
alguns dos cargos principais. Mas os nobres se recusavam a tomar posse, paralisando
o trabalho da Câmara. Em 1706, a discussão entre dois vereadores sobre uma
nomeação acabou em briga. Um nobre e um comerciante trocaram socos e pontapés
na sala de reuniões da Câmara de Olinda.
Após
muita reclamação de ambos os lados, em 1709 o rei D. João V (1706‐1750)
elevou o Recife a vila, com uma Câmara própria. Com autonomia, a localidade não
teria mais que disputar com Olinda o poder político.
A
notícia chegou ao Recife em 5 de fevereiro de 1710, em meio a um ambiente
bastante tenso. Nos meses que haviam decorrido, as desavenças entre mascates e
nobres tinham se agravado. Em grande parte, isso acontecera por conta da
atuação desastrada do governador da capitania na época, Sebastião de Castro e
Caldas. Ele era abertamente partidário dos comerciantes, concedendo‐lhes
benesses, prejudicando a nobreza da terra e praticamente transferindo a sede da
governança para o Recife, o que tinha grande valor simbólico.
Temendo
represálias, Castro e Caldas não divulgou de imediato a emancipação política do
Recife; esperou dez dias. As pedras para a construção do novo pelourinho –
coluna instalada em local público, símbolo da autonomia da municipalidade e
local para castigo de escravos – foram preparadas em segredo. Mas o adiamento
não resolveu a situação. O descontentamento da nobreza da terra levou o grupo a
iniciar imediatamente sua reação: um atentado contra o governador e a derrubada
da Câmara do Recife. Na noite de 17 de outubro, quando voltava de uma missa,
Castro e Caldas foi alvejado por vários tiros. Ferido, o governador tentou em
vão reprimir a sedição. Os contingentes reunidos por senhores de engenho
conseguiram avançar para o Recife.
No
dia 6 de novembro, cerca de três mil homens acamparam nas imediações de um
Recife tomado pelo pânico. Testemunhos da época relatam que desde a invasão
holandesa não se presenciava tanto desespero. Acuado, o governador fugiu para a
Bahia. Com ele foram os mascates mais envolvidos nas manobras que levaram à
criação da nova Câmara e os maiores credores dos senhores de engenho.
Figura 2.: Os mascates e seus servos, numa gravura de Chamberlain. Com seu crescente poder econômico, os comerciantes recifenses queriam participação no poder político municipal.
As
autoridades que permaneceram na capitania conseguiram manter os ânimos sob
controle. As milícias foram autorizadas a marchar pela vila. As fileiras mais
numerosas entraram no dia 9, acompanhadas por religiosos encarregados de manter
a ordem e coibir abusos. Nesse mesmo dia, 12 índios foram enviados ao
pelourinho com a missão de destruí‐lo. Após derrubar a
coluna, arrastaram pelas ruas a placa de bronze que materializava a autoridade
municipal do Recife. Outras duas marchas menores foram feitas nos dois dias
seguintes, e ao longo do trajeto os milicianos bradaram ofensas contra o
Recife.
Por
ordem régia de 1707, competia ao bispo D. Manuel Álvares da Costa assumir o
governo. No entanto, ele estava na Paraíba em visita pastoral, e teve que sair
de lá às pressas. Com a confusa situação, os líderes locais acharam melhor
chegar a um consenso sobre quem deveria governar. Um grupo mais radical queria
a proclamação de uma república controlada pela nobreza, nos moldes de Veneza
(proposta pioneira no continente americano). Já os moderados defendiam a
entrega do governo ao bispo. Depois de muito debate, a posição desses últimos
prevaleceu.
D.
Manuel Álvares da Costa governou Pernambuco durante 11 meses, controlado de
perto pelos nobres. A nova Câmara foi fechada, seus papéis foram destruídos e
seus oficiais, humilhados em praça pública. Em Lisboa, a notícia chegou no
final de fevereiro de 1711, e o Conselho Ultramarino começou a preparar a
punição ao levante. Um novo governador, Félix José Machado, foi nomeado e instruído
a identificar e prender os cabeças da sedição dos nobres.
Enquanto
isso, os mascates se articulavam para reagir. Tinham que garantir que o novo
governador pudesse assumir. Em 18 de junho de 1711, tomaram as fortalezas do
porto. A nobreza sitiou a vila com 1.500 homens e canhões retirados dos fortes
litorâneos. Os mascates dispararam cerca de cinco mil projéteis contra os
sitiantes, mas não conseguiram romper o cerco. As baixas somadas não chegaram a
uma dezena, mas na vila houve escassez de comida e água potável. A população
teve que comer mariscos com açúcar.
Em
Pernambuco e nas capitanias vizinhas, a população se dividia entre apoiar
Olinda ou Recife. Alguns senhores de engenho do sul de Pernambuco aderiram ao
Recife, o que permitiu que a vila fosse abastecida pelo mar com provisões
embarcadas em portos secundários. O impasse durou até o outubro de 1711, quando
o novo governador chegou. Após delicadas negociações, os combatentes foram
desmobilizados. Só então Félix Machado pode desembarcar e ser empossado. No
início, agiu de forma aparentemente imparcial, mas quando a poeira baixou, pôs
em prática um elaborado plano de repressão aos nobres da terra.
A
Câmara do Recife voltou a funcionar em meados de novembro de 1711. Ao longo das
décadas seguintes, surgiram vários pontos de atrito entre as duas
municipalidades. Questões de jurisdição sobre a administração dos tributos
alimentaram um conflito político crônico. De qualquer forma, o resultado da
Guerra dos Mascates foi a entrada de um novo grupo social na esfera política.
No século XXI, quando o vereador mais votado nas eleições locais foi um
comerciante que diz ter orgulho do que faz, fica evidente o legado do conflito.
[1] GEORGE F. CABRAL DE
SOUZA É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UFPE, PRESIDENTE DO INSTITUTO ARQUEOLÓGICO,
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PERNAMBUCANO e AUTOR DA TESE “ELITES Y EJERCICIO DE PODER EN
EL BRASIL COLONIAL: LA CÁMARA MUNICIPAL DE RECIFE (1710‐1822)”.
Saiba
Mais ‐ Bibliografia
ACIOLI,
Vera Lúcia Costa. Jurisidição e
Conflito. Aspectos da administração colonial em Pernambuco no século XVII.
Recife: Ufpe, 1997.
MELLO,
Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos.
Nobres contra mascates: Pernambuco, 1666‐1715. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
Saiba
Mais ‐ Documento
SANTOS,
Manuel dos. Calamidades de Pernambuco.
Editado por SILVA, Leonardo Dantas. Recife: FCCR, 1986.