A
discussão sobre se o movimento nazista alemão - cujo governo matou milhões de
pessoas e levou à Segunda Guerra Mundial - teria as mesmas origens do marxismo
ferve nas redes sociais há alguns meses, com a crescente polarização do debate
político no Brasil.
Mas
historiadores entrevistados pela BBC Brasil esclarecem o que dizem ser uma
"confusão de conceitos" que alimenta a discussão - e explicam que, na
verdade, o movimento se apresentava como uma "terceira via".
"Tanto
o nazismo alemão quanto o fascismo italiano surgem após a Primeira Guerra
Mundial, contra o socialismo marxista - que tinha sido vitorioso na Rússia na
revolução de outubro de 1917 -, mas também contra o capitalismo liberal que
existia na época. É por isso que existe essa confusão", afirma Denise
Rollemberg, professora de História Contemporânea da Universidade Federal
Fluminense (UFF).
"Não
era que o nazismo fosse à esquerda, mas tinha um ponto de vista crítico em
relação ao capitalismo que era comum à crítica que o socialismo marxista fazia
também. O que o nazismo falava é que eles queriam fazer um tipo de socialismo,
mas que fosse nacionalista, para a Alemanha. Sem a perspectiva de unir
revoluções no mundo inteiro, que o marxismo tinha."
O
projeto do movimento nazista, segundo Rollemberg, previa uma "revolução
social para os alemães", diferentemente do projeto dos partidos de direita
da época, "que vinham de uma cultura política do século 19, de exclusão
completa e falta de diálogo com as massas".
Mesmo
assim, ela diz, seria complicado classificá-lo no espectro político atual.
"Eles rejeitavam o que era a direita tradicional da época e também a
esquerda que estava se estabelecendo. Eles procuravam um terceiro
caminho", afirma.
Nacionalismo
A ideia de uma "revolução
social para a Alemanha" deu origem ao Partido Nacional-Socialista alemão,
em 1919. O "socialista" no nome é um dos principais argumentos usados
nos debates de internet que falam no nazismo como um movimento de esquerda.
"Me parece que isso é uma
grande ignorância da História e de como as coisas aconteceram", disse à
BBC Brasil Izidoro Blikstein, professor de Linguística e Semiótica da USP e
especialista em análise do discurso nazista e totalitário.
"O que é fundamental aí é o
termo 'nacional', não o termo 'socialista'. Essa é a linha de força fundamental
do nazismo - a defesa daquilo que é nacional e 'próprio dos alemães'. Aí entra
a chamada teoria do arianismo", explica.
De
acordo com Blikstein, os teóricos do nazismo procuraram uma fundamentação
teórica e filosófica para defender a ideia de que eles eram descendentes
diretos dos "árias", que seriam uma espécie de tribo europeia
original.
"Estudiosos
na Europa tinham o 'sonho da raça pura' nessa época. Quanto mais próximos da
tribo ariana, mais pura seria a raça. E esses teóricos acreditavam que o grupo
germânico era o mais próximo. Daí surgiu a tese de que, para serem felizes,
tinham que defender a raça ariana, para ficar longe de subversões e decadência.
(Alegavam que) a raça pura poderia salvar a humanidade."
A
ideia de uma defesa do povo germânico ganhou popularidade em um momento de
perda de territórios, profunda recessão e forte inflação após a Primeira Guerra
Mundial - e tornou-se o centro do movimento nazista.
"Era
preciso recuperar a moral do pobre coitado, que não tinha dinheiro e era
'massacrado pelos capitalistas'", explica Blikstein. Nesse contexto,
afirma, o nazismo vendia a ideia de "reeguer o orgulho da nação ariana. O
pressuposto disso seria eliminar os não arianos. E essa teoria foi aplicada até
as últimas consequências".
'Marxistas
e capitalistas'
Mesmo propagando a ideia de que o
nazismo planejava uma revolução que garantiria justiça social na Alemanha - o
que incluía, por exemplo, maior intervenção do Estado na economia -, o partido
fazia questão de deixar clara sua oposição ao marxismo.
"Os comícios hitleristas
eram profundamente antimarxistas", disse à BBC Brasil a antropóloga
Adriana Dias, da Unicamp, que é estudiosa de movimentos neonazistas.
"O nazismo e o fascismo
diziam que não existia a luta de classes - como defendia o socialismo - e, sim,
uma luta a favor dos limites linguísticos e raciais. As escolas
nacional-socialistas que se espalharam pela Alemanha ensinavam aos jovens que
os judeus eram os criadores do marxismo e que, além de antimarxistas, deveriam
ser antissemitas."
Os judeus, aliás, tornaram-se o
ponto focal da perseguição nazista porque representavam tanto o socialismo como
o capitalismo liberal, mesmo que isso possa parecer antagônico nos dias de
hoje.
"Havia uma simbologia do
judeu como representante, por um lado, do socialismo revolucionário - porque
Marx vinha de uma família judia convertida o ao protestantismo, assim como
muitos bolcheviques", diz a historiadora Denise Rollemberg.
"Por outro lado, os judeus
eram associados ao capitalismo financeiro porque os judeus assimilados (que
assumiram as culturais de outros países, para além da nação religiosa) que
viviam na Europa tinham uma tradição de empréstimos de dinheiro e de
negócios."
'Precisão
científica'
A "precisão científica"
do extermínio de judeus na Alemanha nazista também dificulta as comparações com
a perseguição política no regime socialista soviético, na opinião de Izidoro
Blikstein.
"Há muitos genocídios pelo
mundo, mas nenhum igual ao nazismo, porque este era plenamente apoiado por
falsa teoria científica e linguística e levada até as últimas consequências. A
União Soviética também tinha campos de trabalhos forçados, mas não existia uma
doutrina para justificar isso", afirma.
"Mas há traços comuns entre
o nazismo o regime (soviético) de Stálin. A propaganda, por exemplo, e o fato
de que ambos eram regimes totalitários, que controlavam e legislavam sobre a
vida pública e também privada do cidadão", admite.
Além dos judeus, o regime nazista
também perseguiu democratas liberais, socialistas, ciganos, testemunhas de
Jeová e homossexuais - algo que, nos dias de hoje, associa o movimento a
partidos de extrema-direita que pregam contra a comunidade LGBT, contra
imigrantes e contra muçulmanos, por exemplo.
"Todo esse projeto de
repressão, censura, campos de concentração e extermínio nazista era direcionado
a quem estava fora do que eles chamavam de 'comunidade popular', o povo alemão.
Mas alemães que eram democratas liberais e socialistas também eram excluídos
por serem contrários ao projeto nazista e colocarem em risco a comunidade
popular", explica Denise Rollemberg.
No entanto, para Blikstein, a
ideia de raça é tão central ao nazismo que, assim como não se pode usar o
projeto de revolução social para classificá-lo como "esquerda",
também é difícil defini-lo como "direita".
"Dizer apenas que Hitler era
um político de direita é apequenar o nazismo. Foi mais do que direita ou
esquerda. Foi uma doutrina arquitetada para defender uma raça, embora esse
conceito seja discutível e pouco científico", diz.
'Crise de
referências'
Uma recapitulação do projeto e do
regime nazista, de acordo com os especialistas no assunto, aumenta a confusão:
deveria haver igualdade social e distribuição de renda, mas imigrantes, judeus,
opositores políticos e até filhos "não talentosos" de alemães seriam
excluídos dela por serem "menos puros"; o Estado prometia interferir
mais na economia para benefício dos cidadãos, mas empresas privadas tiveram os
maiores lucros com a máquina de extermínio e de guerra nazista; o movimento
dizia defender os trabalhadores, mas sindicatos trabalhistas foram extintos,
assim como o direito de greve; o socialismo marxista era considerado ruim, mas
o liberalismo também.
Como seria possível defender
todas estas ideias ao mesmo tempo?
"Quando o partido foi
constituído, ele tinha uma vertente mais à esquerda e uma mais à direita. No
início, tinha um discurso bastante antiburguês. Mas ao assumir o poder na
Alemanha, o grupo à direita foi fazendo mais alianças com a burguesia e
expulsando o grupo à esquerda", diz a historiadora da UFF.
"Além disso, o nazismo nasce
no meio de uma crise de referências muito grande após a Primeira Guerra. Muitos
passaram de um lado para outro. Os valores muitas vezes vão se embaralhar, e
esses conceitos de direita e esquerda atuais não resolvem bem o problema."
Entre historiadores, a tentativa
de traçar paralelos entre o nazismo e o fascismo europeus e o regime stalinista
na União Soviética também não é nova, segundo Rollemberg.
"Todos eles eram regimes
totalitários, mas o totalitarismo pode estar de qualquer lado. Hoje entendemos
que há o totalitarismo mais à direita, como o nazismo e o fascismo, e o de
esquerda, como o da União Soviética."