Entre foices e facões*
Conflitos
nos quais forças muito bem armadas enfrentam outras em condições desiguais não
são novidade. A batalha do Jenipapo, no Piauí, foi um desses. Embora tenha
ocorrido num único dia – 13 de março de 1823 –, junto do riacho Jenipapo, na
vila de Campo Maior, o confronto foi dos mais violentos. E também teve um papel
importante para garantir a Independência e manter a unidade política do Brasil. Após o
7 de setembro, que obteve a independência da Região Sul, a Corte portuguesa
pretendia assegurar pelo menos a parte norte do Brasil como Colônia.
A
batalha foi o resultado de embates entre o poder português e a população
sertaneja piauiense, que se uniu a cearenses e maranhenses a fim de expulsar do
Piauí o major João José da Cunha Fidié (?-1856), comandante das Armas e
governador da capitania. Fidié havia sido enviado pelo rei de Portugal, D. João
VI, para garantir a manutenção do sistema colonial e impedir a Independência.
A
participação da população foi uma marca dessa batalha. Mais de 2.000 sertanejos
de todas as classes sociais – fazendeiros, oficiais militares, vaqueiros,
lavradores, artesãos, escravos, roceiros – formaram uma multidão de voluntários
armados de instrumentos do trabalho na roça e de caçadas, além dos domésticos e
agrícolas, como facões, enxadas, foices, machados. As mulheres também ajudaram,
arrecadando fundos para reunir um exército guerrilheiro. Do outro lado, as
tropas portuguesas, comandadas pelo major Fidié, eram compostas, em sua
maioria, de mercenários, somando entre 1.600 a 1.800 homens de Cavalaria,
Fuzilaria, Infantaria, disciplinados e treinados, bem equipados e armados, com
11 peças de artilharia, um canhão e lançadoras de granadas.
O
experiente major, que havia lutado contra as tropas de Napoleão na invasão de
Portugal em 1807, voltava de Parnaíba, no litoral do Piauí, onde causara pânico
devido à violenta repressão ao movimento de adesão ao grito do Ipiranga. Ao
saber que os revoltosos se concentravam no município de Campo Maior, utilizou
uma estratégia fatal contra eles: enviou um grupo de vanguarda que os
guerrilheiros acreditavam ser o exército inimigo inteiro, e por isso atacaram
com todas as forças. Esse primeiro combate, conhecido como “batalha do Jacaré”,
foi seguido pelo confronto em outro riacho. Às margens do Jenipapo, o embate
foi terrível e brutal, corpo a corpo, das nove da manhã às duas da tarde sem
nenhuma interrupção, e foi marcado por cenas de extrema violência de ambos os
lados. O confronto foi corpo a corpo, com combatentes degolados de ambos os lados,
luta corporal, pisoteamento pelos cavalos das tropas de Fidié, feridos se
contorcendo de dor, mortos espalhados pelo campo de batalha, sem serem
enterrados.
Ao
final da luta, o cenário da batalha ficou repleto de armas, munições, peças de
artilharia, mortos e feridos de ambos os lados. O número de baixas não é
preciso porque não houve contagem. Do lado português, foram aproximadamente
60 feridos e cerca de 20 mortos, e não houve prisioneiros; do lado dos
brasileiros, em torno de 500 prisioneiros e mais de 200 mortos e feridos.
Fidié enterrou alguns dos seus mortos logo depois, em cinco sepulturas, mas
muitos foram deixados a céu aberto.
Devido
ao seu poderoso exército, o major ganhou a batalha, mas perdeu a guerra da
independência graças às táticas de guerrilha dos sertanejos: após o combate do
Jenipapo, num assalto de surpresa ao acampamento militar, eles se apoderaram
dos armamentos e da munição, de dinheiro e bagagem do comandante português, e
cercaram o caminho para Oeiras, a capital da província, que já tinha aderido à
Independência no mês de janeiro.
Diante
dessa situação e enfrentando deserções constantes, que reduziram
consideravelmente suas tropas, o major Fidié se viu forçado a se retirar do
Piauí. Levantou acampamento e atravessou o Rio Parnaíba para o Maranhão,
refugiando-se na cidade de Caxias, onde buscou reforços militares e recursos
financeiros. O Maranhão foi literalmente invadido, e após 15 dias de um
audacioso cerco à cidade de Caxias pelas forças independentes de
aproximadamente 6.000 homens do Piauí, do Maranhão e do Ceará, ocorreu o
combate no Morro das Tabocas, com a rendição do major Fidié, faminto e
desarmado. Preso, foi enviado para o Rio de Janeiro e depois para Portugal,
onde foi recebido como herói. A oficialização da independência do Piauí, do
Ceará e do Maranhão ocorreu em 6 de agosto de 1823, por uma Junta Militar das
três capitanias.
Na
memória dos piauienses, a batalha do Jenipapo é o mais notável episódio das
lutas no Piauí pela independência do Brasil. Diferentes autores traçam um
relato heroico e patriótico, às vezes romântico, gerando um conhecimento quase
imutável de que houve uma epopeia na luta pela independência, a ponto da data
de 13 de março ter se tornado feriado estadual. Nos 150 anos do evento, em
1973, foi construído o Monumento do Jenipapo no local da batalha, onde a
multidão sem rosto recebeu homenagens em placas, além de ter sido reconstituído
um cemitério.
Até hoje, o lugar é
usado pelos governos estadual e municipal de Campo Maior em solenidades
comemorativas, com a distribuição de medalhas, honrarias e comendas.
Recentemente, a data foi inserida na bandeira do Estado, e outro monumento foi
erguido próximo ao local do combate. Após tanto tempo no esquecimento, há uma
movimentação no Congresso Nacional para que a batalha do Jenipapo seja
introduzida nos livros didáticos de História do Brasil.
* Este texto foi escrito por Claudete Maria Miranda Dias e foi originalmente publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional (06 jul. 2011).
Figura 1. Monumento Nacional do Jenipapo. A obra foi erguida na estrada
que liga Teresina a Parnaíba, no Piauí, e homenageia os combatentes que
lutaram contra as tropas portuguesas na batalha do Jenipapo, em 1823.
Figura 2. Charge de Rubens Felix (2007) que apresenta uma narrativa visual
da Batalha do Jenipapo. A charge ironiza o sentimento nacionalista da batalha
que foi motivada pela manutenção do poder econômico da elites latifundiárias
do Piauí.