* Texto escrito pela pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz e originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo (20 fev. 2010).
Desde
que o Rio é Rio de Janeiro, ou melhor desde 1763, quando desbancou Salvador e
tornou-se capital - e o grande centro administrativo colonial e depois imperial
-, duas faces pretensamente distintas convivem, se suportam. De um lado, a
Cidade Maravilhosa, cuja natureza deixou estupefatos tantos e mais tantos
estrangeiros. Aí está o paraíso edenizado, descrito por suas colinas e baías,
com seus golfinhos pulando nas águas e o sol a dourar tudo e todos. Do outro
lado, reside o espetáculo da população mestiçada, dada a hábitos estranhos,
como diziam e reclamavam os viajantes. Os relatos mencionam a existência de
"africanos por toda parte", com seus dorsos nus, danças lascivas,
vozerio alto e festas barulhentas, descontroladas. Tal qual Janus, o deus grego
de duas faces, o Rio de Janeiro mais lembrava uma cidade dividida: uma face
representava a civilização e a corte, que pretendia se assemelhar aos Bourbons,
Habsburgos e também Braganças; a outra reproduzia o mundo escravo, com costumes
e práticas considerados "odiosos". E esse tipo de dicotomia tomou as
descrições e a imaginação dos cientistas, naturalistas, ou meros curiosos, que
foram se acumulando com o passar dos anos. Na mesma medida em que tentavam
compreender essa exótica corte tropical dos portugueses, estranhavam as
ambiguidades de todos os tipos que por aqui grassavam.
O
viajante inglês Luccock dizia que todo cuidado era pouco quando se caminhava
pelas ruas. O andarilho desavisado, que pretendia apenas tomar "uma
fresca", podia facilmente levar um balde de excrementos na cabeça.
Abriam-se janelas e gelosias e, do alto do segundo pavimento das casas, um
líquido escuro era arremessado, sendo antecipado apenas por um breve aviso:
"Lá vai carga!" Dispositivos foram criados com o objetivo de impedir
tal prática, assim como se tentou disciplinar o cheiro pestilento das ruas, recorrendo-se
aos tigres. Tigres, ou tigrados, eram escravos cuja atividade resumia-se a
recolher detritos que se acumulavam nas ruas e nas calçadas. O apelido era, por
sua vez, resultado da naturalização da vexatória profissão: de tanto lidarem
com as fezes ficavam como que camuflados; tigrados. Nada de esgotos, banheiros
públicos ou privados; a prática implicava, simplesmente, deixar as amostras ao
ar livre.
Não
é de hoje, portanto, o problema que assola nossos governantes cariocas. Já em
finais do século 18 e inícios do 19 as ruas do Rio eram caracterizadas como
fétidas e insalubres, assim como suas vias, consideradas intransitáveis. O
conde de Joinville, do alto de sua nobreza, rogava todas as pragas contra os
cachorros, que "legavam suas necessidades para a posteridade, sujando
cantos e espaços privilegiados". Limpeza, ou melhor, a falta dela,
transformava-se em tema constante quando se tratava de descrever a Cidade
Maravilhosa.
Na
época da chegada de d. João, a grande preocupação era, novamente, limpeza. A
família real estava para aportar, em 1808, e seria preciso "dar boa
impressão", eufemismo necessário para evitar a referência desagradável ao
estado pútrido da cidade. O Senado publicou, na ocasião, decreto que pedia não
só para que se ornassem casas e janelas, mas que as ruas por onde o cortejo
real passasse tivessem "a conveniente limpeza e inspeção":
"Ordena o mesmo senhor que se mande fazer os reparos que forem precisos na
calçada dela, e dê às providências para que se ache limpa, areada e livre de todo
o pejamento".
Outro
tema presente na pauta local, porém mencionado de maneira discreta (para
cometermos mais um eufemismo), era o conhecido "espetáculo das raças"
que desfilavam pelas ruas do Rio. Em Reisen in Brasilien, um viajante alemão
mencionava como lhe parecia difícil lidar com "a atividade intensa e
febril, que aturdia o visitante, desacostumado a ver gente de todas as raças,
múltiplas cores e costumes variadíssimos". Mais uma vez, Luccok
sentenciava: "A cidade do Rio é a mais suja associação humana vivendo sob
a curva dos céus".
Claro
que não é de bom-tom confiar cegamente nas avaliações, muitas vezes
preconceituosas, dos viajantes. Mas o importante é que as ruas do Rio sempre
representaram espetáculo à parte: barulhentas, cheias de gente e de detritos,
com suas calçadas de terra e cobertas por imundícies de toda sorte. Na bela
visão de Oliveira Lima, por elas circulavam tipos dos mais estranhos:
"Andadores de almas e pedintes de irmandades com suas opas verdes,
escarlates e azuis, estendendo aos transeuntes e abrindo debaixo das janelas os
largos sacos vermelhos; ou os cumpridores de promessas devotas, tirando por
humildade cristã e não por necessidade esmolas para um missa em ação de
graças". Mas circulava, ainda, muito "detrito acumulado", resultado
do depósito de centenas de anos sem o devido serviço de coleta.
O
fato é que os problemas se acumulavam, e a olhos vistos. Dizia o protestante
Bosche que o badalar incessante dos sinos das igrejas e mosteiros, o frequente
estampido dos foguetes, eram o suficiente para perturbar "o pensamento de
qualquer homem razoável e para levar o recém-chegado ao desespero". A
poluição era, assim, não só olfativa ou visual, como também sonora.
E,
se no cotidiano pacato, a situação escapava ao controle, o que dizer dos dias
de festa? O viajante Kidder definiu de maneira límpida o alcance dos rituais no
Brasil: "Feriados, no entender de muitos naturais do país, são aqueles
dias aos quais todos os outros estão subordinados". Datas de exceção eram,
pois, aquelas em que não se celebrava nenhum feriado. O habitual era o
transeunte se deparar com alguma festa animada, quando as ruas ficavam ainda
mais sonoras e sujas. Por sinal, as procissões sempre estiveram na ordem do
dia. No Rio de Janeiro colonial eram sete: a de São Sebastião, a 28 de janeiro;
a de Santo Antônio, na Quarta-Feira de Cinzas; a do Triunfo, na sexta-feira que
antecede o Domingo de Ramos; a do Senhor dos Passos, na segunda-feira da
quaresma; a do Enterro, na Sexta-Feira Santa; a do Corpo de Deus; e a da Visitação,
a 2 de julho. Nessas ocasiões, até mesmo a corte e seus figurões, portando
orgulhosamente seus uniformes bordados, saíam em desfile, com o infalível
cortejo de soldados de barretina pendurada no antebraço, estandartes
religiosos, cantores da Real Capela e demais pessoas gradas. Os préstitos
seguiam por entre cânticos e mais foguetes, enquanto a multidão compactada
aplaudia a procissão e o comércio lucrava alto com a venda de doces e bolos. Já
os "restos humanos", dizia o padre Perereca, grande "microfone
ambulante" à época da família real, permaneciam como marcas indeléveis dos
eventos.
Afinal,
ninguém é de ferro: não havia dia sem festa e não havia festa que não valesse
um bom dia. Mas não eram só as procissões que brotavam nas ruas. Foguetórios, leilões,
batuques, fandangos, cavalhadas, a queima do Judas no Sábado Santo, a festa do
Imperador do Espírito Santo, os aniversários da realeza, as demais datas
religiosas... Qualquer motivo era bom para tirar a cidade da, aparente, calma
semanal. Enfim, dia sim e dia não, as festas contornavam o cotidiano e
mostravam um outro lado da cidade. Outro lado e o mesmo. Se uma superfície do
espelho refletia a civilizada corte, a outra representava o dia a dia, tomado
por "gentes estranhas", muito barulho e mais sujeira.
Visto
sob esse ângulo, o panorama mais se assemelhava a uma batalha entre barbárie e
civilização, sujeira versos pureza, barulho oposto a calma, negros contra
brancos. Mas mais do que duas versões, dispostas de maneira cartesiana, temos
aqui dois termos da mesma equação. Não havia corte sem escravos a trabalhar,
luxo sem imundície e detritos. Tudo tão distante, mas tão (irritantemente)
semelhante. O outro lado do espelho sempre foi, afinal, parte do mesmo espelho.
Não
parece, pois, coincidência, sinal dos céus ou fatalidade da natureza o que
temos lido nesses últimos dias do reino de Momo. Nessa semana, o ambiente foi
tomado por pronunciamentos que evocam velhos discursos eugenistas do século 19,
com seu tom de missão civilizacional e interventora. Eduardo Paes, por exemplo,
fez uma verdadeira campanha contra os "mijões" e seus atos obscenos,
assim como coibiu os "atos de barbárie" com muita cadeia, repressão e
cobertura jornalística. Nada contra as regras ou os projetos de higiene. Ao
contrário, tais práticas erradicaram muitas epidemias, que matavam mais que
nosso fraco coração. Estranho, porém, é o tom de guerra que contaminou nossos
governantes, como se estivessem diante de um exército armado de invasores
mijões.
Não
há, porém, como jogar a culpa na exceção, ou lançar a conta exclusivamente no
bolso dos "bárbaros invasores". Invasores somos nós mesmos e, mais
uma vez, a dialética mostra como não há como ficar exclusivamente com a face
brilhante do espetáculo. Aspectos menos nobres, e por isso com frequência
ocultos, quando não silenciados, insistem (secularmente) em se apresentar. Os
bastidores - a sujeira, o barulho, o descontrole - fazem parte integral do
mesmo show, que chamamos carnaval. Engraçado como só de vez em quando é que
acionamos a frase da rainha da França que, inclusive morreu por conta dela:
"De perto ninguém é mesmo normal". Sempre que possível, e quando bem
convém, usamos esse "complexo de Maria Antonieta", de efeito
calmante, uma vez que cria novas e seguras fronteiras simbólicas: lá estão
eles; aqui permanecemos nós.
Frágil
castelo de cartas, pronto para ser destruído. Como canta Caetano Veloso:
Narciso acha (e continua a achar) feio o que não é espelho!