Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

domingo, 27 de julho de 2014

A Formação das Monarquias Centralizadas Europeias

As estruturas feudais eram um obstáculo ao desenvolvimento comercial e urbano na Europa. Os vários feudos e os seus poderes locais atrapalhavam o comércio, pois os senhores feudais interferiam na atividade comercial cobrando impostos dos mercadores. Ademais, por conta da fragmentação política não havia na Europa uniformidade territorial de leis, unidade monetária legal ou mesmo de pesos e medidas, algo que atrapalhava as transações comerciais.

A partir disso, comerciantes, artesãos e banqueiros passaram a defender a existência de um poder centralizado que se colocasse acima dos poderes locais, impusesse normas e também facilitasse o comércio. Essa burguesia europeia acabou contribuindo para a formação de um exército mercenário a serviço do Estado, uma força militar que tinha como finalidade garantir a autoridade do monarca. A ideia de centralização política também agradou aos reis europeus, que desejavam se sobrepor à nobreza e limitar o poder da Igreja.

A formação das monarquias centralizadas europeias, portanto, foi fruto da comunhão de interesses entre reis e burgueses. Por sua vez, a nobreza também acabou se beneficiando deste processo, pois o exército do rei garantia a ordem contra as rebeliões rurais e mantinha boa parte dos privilégios feudais.

Espanha e Portugal

A Península Ibérica foi povoada por iberos, celtas, lígures, visigodos e árabes, estes últimos que lá chegaram no século VIII. A formação dos Estados centralizados na região está vinculada à Guerra de Reconquista dos territórios ocupados por muçulmanos. Foi graças à presença árabe que a religião islâmica chegou até a Península Ibérica, onde o cristianismo já se fazia presente. Reinos cristãos independentes foram mantidos no norte da península, na região montanhosa das Astúrias, e foi dali que partiu o movimento da Reconquista a partir do século XI.

Durante a Reconquista, formaram-se os reinos de Leão, Navarra, Castela e Aragão. Os dois últimos anexaram os outros e, em 1469, se uniram por meio do casamento entre Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Fernando e Isabel ficariam conhecidos como os “Reis Católicos” e a união dos dois originou o Estado centralizado espanhol. A conquista de Granada, último reduto árabe no sul da península, e a consequente expulsão dos mouros marcaram a consolidação do Estado espanhol, em 1492.

Já a origem de Portugal remonta ao episódio da doação do Condado Portucalense feita pelo rei Afonso VI de Leão a Henrique de Borgonha, este último sendo um nobre francês participante da Guerra de Reconquista. A doação daquelas terras estava atrelada ao casamento entre Henrique de Borgonha e dona Teresa, filha ilegítima do rei. Em 1139, após disputas familiares, Portugal tornou-se independente de Leão, quando dom Afonso Henriques, o filho de Teresa e Henrique, expulsou a própria mãe do lugar porque ela defendia a sujeição do Condado Portucalense ao Reino de Leão.

A partir daquele momento iniciou-se a Dinastia de Borgonha (1139-1383), que continuou a guerra contra os muçulmanos e expandiu as fronteiras do reino para o sul. Com a expansão territorial, áreas eram doadas à nobreza guerreira, mas esses nobres não ganhavam a posse hereditária das terras. Em Portugal, portanto, a hegemonia da autoridade real foi mantida, enquanto a formação de uma nobreza proprietária e autônoma não foi consolidada.

Com a transformação de Portugal em escala da rota marítima que ligava o mar Mediterrâneo ao norte da Europa, houve a consolidação do setor mercantil da sociedade portuguesa. A partir do século XIV, as guerras e a peste negra abalaram o continente europeu, aumentando a insegurança de rotas comerciais terrestres, o que fez com que a rota marítima que passava por Portugal ganhasse mais importância.

Em 1383, morreu Fernando I, o último rei da Dinastia de Borgonha, que não deixou herdeiros diretos. Houve então uma intensa disputa sucessória, pois parte da nobreza apoiava a entrega da Coroa portuguesa ao genro de dom Fernando, o rei de Castela, enquanto os comerciantes e setores populares queriam que dom João, mestre de Avis, subisse ao trono. Foi a chamada Revolução de Avis, e em 1385, na Batalha de Aljubarrota, as tropas castelhanas foram derrotadas. Dom João ascendeu ao trono e iniciou a Dinastia de Avis.

Com a nova dinastia, os interesses da monarquia e os do setor mercantil se aproximaram, pois os comerciantes queriam ampliar seus mercados e o rei queria fortalecer-se no poder por meio da cobrança de impostos. Tal aliança desencadearia a expansão marítima portuguesa a partir do século XV.

O reino francês

A Dinastia Capetíngia (987-1328), fundada por Hugo Capeto, atuou na centralização do reino francês. Um dos reis dessa dinastia foi Filipe Augusto, ou Filipe II (1180-1223), que iniciou o processo centralizador ao cobrar impostos em todo o território francês e montar um poderoso exército para garantir o seu poder. Filipe II usou como pretexto para realizar tais ações a necessidade de combater os ingleses que ocupavam o norte da França. A antiga monarquia feudal, centrada nos feudos e marcada pela atuação de suseranos e vassalos locais, dava lugar a um Estado centralizado.

Após vencer os ingleses, Filipe II consolidou o seu poder por meio da força militar, da cobrança de impostos realizada por fiscais por ele nomeados e da imposição da justiça real sobre as leis dos nobres locais. O monarca aliou-se à burguesia vendendo Cartas de Franquia aos burgos que quisessem autonomia em relação aos senhores feudais. Já para os nobres territoriais a força monárquica serviu para garantir os privilégios da nobreza e manter a ordem e a subordinação servil.

Luís IX, cujo reinado durou de 1226 a 1270, deu continuidade ao processo de centralização por meio de uma rede de tribunais e da instituição de uma moeda de circulação nacional. Tendo participado da Sétima e da Oitava Cruzadas, falecendo nesta última, foi canonizado pela Igreja católica como São Luís.

Ao herdar um Estado já fortalecido, Filipe IV, o Belo, cujo reinado durou de 1285 a 1314, procurou legitimar o seu poder criando a assembleia dos Estados Gerais, em 1302, sob o primado da soberania real. Formada por membros do clero, da nobreza e por comerciantes das cidades, a assembleia tinha um caráter apenas consultivo e só era convocada quando o monarca queria. Representantes das camadas mais pobres da sociedade francesa não participavam da assembleia.

Com o apoio da assembleia, Filipe IV taxou os bens da Igreja e o papa até o ameaçou de excomunhão. Com a morte do líder da Igreja católica em 1303, Filipe IV interferiu na escolha de seu sucessor, impondo o nome de um francês que viria a ser o papa Clemente V. Além disso, o rei francês forçou a transferência da sede da Igreja de Roma para a cidade de Avignon, no sul da França, em um episódio que ficou conhecido como o Cativeiro de Avignon. Durante setenta anos os papas ficaram submetidos à autoridade do rei da França. Quando outro papa foi nomeado em Roma durante o mesmo período, ocorreu o Cisma do Ocidente que dividiu a autoridade da Igreja católica, que superaria tal situação apenas no século XV.

O fortalecimento do poder monárquico francês foi suspenso com a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Necessitando da nobreza para fortalecer o exército, a monarquia francesa teve de fazer concessões aos nobres. Ademais, a fome, a peste negra e a insatisfação da burguesia com as primeiras derrotas no confronto também colaboraram para o enfraquecimento da monarquia francesa. Eclodiram então as “jacqueries”, rebeliões camponesas como a ocorrida em 1358, quando castelos foram invadidos e senhores foram mortos. Essas rebeliões foram reprimidas pelo Estado e pela nobreza.

Vitórias militares decisivas na Guerra dos Cem Anos vieram apenas no século XV, quando um grande levante popular se voltou contra os ingleses. Joana d’Arc, filha de camponeses humildes que se dizia enviada por Deus para guiar os franceses na expulsão do exército inglês, participou ativamente das lutas e teve um papel importante na resistência francesa à Inglaterra. Ela levou Carlos VII a ser coroado em Reims, conforme as antigas tradições dos francos, mas em 1430 foi capturada e acabou acusada de heresia e condenada à morte por um tribunal eclesiástico.

Os franceses conseguiram expulsar definitivamente os ingleses apenas em 1453, quando terminou a Guerra dos Cem Anos.

O reino inglês

No início do período medieval, a Grã-Bretanha foi ocupada por anglos e saxões. Como o rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor (1042-1066), não deixou filhos herdeiros, houve uma disputa pelo trono. Em 1066, normandos vindos do norte da atual França invadiram a ilha e, sob a liderança de Guilherme, o Conquistador (primo de Eduardo), derrotaram os anglo-saxões na Batalha de Hastings, dando início à Dinastia Normanda. Desenvolveu-se um sistema administrativo para cobrança de impostos e um forte exército foi criado. Guilherme (1066-1087) dividiu o reino em condados, os “shires”, controlados pela nobreza e fiscalizados por funcionários chamados “sheriffs”.

Em 1154, a Dinastia Plantageneta substituiu a Dinastia Normanda quando Henrique II (1154-1189) subiu ao trono. Os monarcas da Dinastia Plantageneta estabeleceram a justiça real e o “Common Law”, um conjunto de leis que deveria ser aplicado em todo o território.

Ricardo I, ou Ricardo Coração de Leão (1189-1199), foi o sucessor de Henrique II. Ricardo I se envolveu em guerras contra a França e participou da Terceira Cruzada, contribuindo com sua ausência para enfraquecer o poder real na Inglaterra. No reinado de João Sem-Terra (1199-1216), irmão de Ricardo, a insatisfação dos nobres com o rei atingiu o seu ponto máximo.

Guerreando contra a França, indispondo-se com o papa, elevando os impostos e tentando taxar os bens da Igreja, João Sem-Terra acabou tendo que enfrentar a revolta da nobreza, que lhe impôs a Magna Carta (1215). Segundo o documento, o monarca só poderia criar impostos ou alterar leis após a aprovação do Grande Conselho, órgão controlado por membros do clero e da nobreza.

Portanto, o processo de centralização política na Inglaterra foi retardado por meio dessa limitação ao poder real. Controlado por membros da velha ordem feudal, o Grande Conselho tinha um caráter conservador, e só aceitou a participação de burgueses em 1265.

Em decorrência da disputa de territórios no norte da Europa, como a próspera região têxtil de Flandres, a Inglaterra se envolveu na Guerra dos Cem Anos contra a França. Os ingleses obtiveram vitórias iniciais importantes, mas passaram a enfrentar alguns problemas, tais como a peste negra, as rebeliões camponesas (destacando-se o levante liderado por Wat Tyler e John Ball, em 1381) e o prolongamento da guerra. Neste quadro, houve o enfraquecimento da nobreza.


Com o fim da Guerra dos Cem Anos, já no século XV, começou uma disputa pela sucessão do trono inglês que afetaria ainda mais a nobreza: a Guerra das Duas Rosas (1455-1485), confronto entre as famílias York e Lancaster, fragilizou a nobreza e possibilitou a centralização política do país.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A Conjuração Baiana (1798) - "Rebelião dos Alfaiates"

A Conjuração Baiana foi um movimento de caráter popular e contou com a participação de sapateiros, escravos, ex-escravos, soldados, alfaiates, padres, médicos e advogados. Contudo, é preciso dizer que membros das elites também participaram do movimento.

A partir de 1763, quando a capital da colônia foi transferida para o Rio de Janeiro, a cidade de Salvador passou a enfrentar dificuldades econômicas. Em Salvador vivia uma população miserável, sobrecarregada de tributos e que contestava a exploração metropolitana frequentemente.

Intelectuais e profissionais liberais propagaram na Bahia os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade sob a inspiração da Revolução Francesa (1789) e das independências dos Estados Unidos (1776) e do Haiti (1793). O movimento só foi possível graças à circulação de ideias. Ocorreram reuniões entre membros da elite baiana e das camadas pobres de Salvador para conspirar contra o governo português. Em conversas e reuniões secretas na periferia de Salvador ecoaram os princípios da Revolução Francesa (1789) que desestruturaram o Antigo Regime. Em 1793, começaram a aparecer os sinais de simpatia pela França e por seu regime republicano. Traduções, cópias e trechos de livros e documentos franceses passavam de mão em mão na cidade. Jantares com carne em plena Sexta-feira Santa demonstravam uma atitude de desprezo pela tradição católica, intimamente relacionada às monarquias absolutistas da França e de Portugal. A movimentação desagradava ao governo colonial, que sentia a sombra de uma ameaça. Cartas enviadas a Lisboa denunciaram o presbítero e rico comerciante Francisco Agostinho Gomes por crime de “francesia”, isto é, divulgação das ideias revolucionárias francesas. Outro alvo de denúncias foi Cipriano Barata (1762-1838), recém-chegado de Lisboa, onde se formara em Medicina, por volta de 1793. As lojas maçônicas, por seu caráter secreto, tornaram-se um espaço importante de articulação de ideias. A Sociedade Maçônica Cavaleiros da Luz, na Bahia, tinha como integrantes, entre outros, os já citados Francisco Agostinho Gomes, Cipriano Barata e José Borges de Barros, que, juntos, participavam dessas reuniões sigilosas. Pertencente à elite baiana e maçom, Barros traduziu textos de Thomas Paine (1737-1809), político e intelectual inglês que participou da Revolução Americana (1776) e da Revolução Francesa. Por isso, foi denunciado às autoridades, mas suspeitou que seria preso e fugiu para Portugal. 

As notícias e os ideais da Revolução Francesa também chegavam à Bahia por meio de navios franceses que passavam pela região. Alguns franceses que estiveram na Bahia perceberam o clima contrário ao absolutismo que existia no lugar e um deles, Antoine René Larcher, chegou a propor ao governo francês um projeto de invasão de Salvador, com a posterior montagem de uma República independente na região baiana, que seria aliada da França. O governo revolucionário francês não aprovou o projeto, mas continuou acompanhando o que ocorria na América portuguesa, desenvolvendo o contrabando e semeando a revolta.


 REIVINDICAÇÕES:

- Proclamação de um governo republicano, democrático e livre de Portugal.

- Liberdade de comércio.

- Aumento dos salários dos soldados.

- O fim da escravidão e do preconceito contra negros e mulatos também eram exigências de parte dos conspiradores.

- Apesar de a autonomia em relação a Portugal ser uma reivindicação dos conspiradores, houve divergências entre eles acerca de mudanças na estrutura interna da sociedade local. Membros da elite baiana, por exemplo, se retiraram do movimento quando as camadas populares enfatizaram a luta contra os privilégios senhoriais e contra a escravidão.


ALGUNS PERSONAGENS DA CONJURAÇÃO:

- Os alfaiates João de Deus Manuel Faustino dos Santos Lira.

- Os soldados Lucas Dantas de Amorim TorresLuís Gonzaga das Virgens e Romão Pinheiro.

- O padre Francisco Gomes.

- O farmacêutico João Ladislau de Figueiredo.

- O professor Francisco Barreto.

- O médico Cipriano Barata.


O DESENROLAR DA CONJURAÇÃO

A rebelião foi proclamada em 12 de agosto de 1798, com cartazes sendo espalhados em Salvador. Neles havia um manifesto que reivindicava desde o aumento do soldo das tropas até o fim do domínio colonial português. Defendia ainda uma “República Bahiense”, na qual “todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade”. Luiz Gonzaga das Virgens foi apontado pelas investigações como o autor dos cartazes, e foi preso no dia 24 de agosto. Sua prisão foi o estopim para o segundo episódio que marca a Conjuração Baiana. Um grupo de quatorze pessoas, depois de uma reunião na oficina do ourives Luiz Pires, decidiu realizar um encontro no campo do Dique do Desterro na noite de 25 de agosto. Lá, discutiram as possibilidades de um levante armado para a vitória da revolução. O ourives Luiz Pires era o único que portava uma arma de fogo. Contudo, o movimento foi reprimido pelas autoridades portuguesas que contaram com denúncias feitas por pessoas que traíram o movimento. Na manhã de 26 de agosto de 1798, começaram as prisões. Quarenta e uma pessoas foram detidas, mas somente 33, entre as quais onze escravos, chegaram ao final da devassa.

Os participantes mais pobres receberam penas mais duras. João de Deus Nascimento, Manuel Faustino, Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens foram enforcados na Praça da Piedade e esquartejados, tendo as partes dos seus corpos espalhadas por Salvador em novembro de 1799. Durante os catorze meses que ficaram presos nos cubículos situados nos porões do velho prédio da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, sofreram repetidos interrogatórios, tendo sido acusados de crime de rebelião. Os quatro foram reunidos ao entardecer do dia 5 de novembro de 1799 para ouvir a sentença da condenação: deveriam morrer na forca armada na Praça da Piedade, assim denominada em homenagem a Nossa Senhora da Piedade. Em seguida, com grilhões nos pés, foram levados para o Oratório da Câmara. Ali eles permaneceram por três noites: 5, 6 e 7 de novembro de 1799. Graças aos relatos escritos por um frade carmelita descalço, sabemos como foram os últimos momentos dos condenados. Em seus dois manuscritos, o prior do Convento de Santa Tereza, frei José do Monte Carmelo, fornece detalhes sobre os momentos que antecederam a execução. O primeiro relato se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa, já o segundo está guardado no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Na véspera da execução, Manuel Faustino do Santos tentou se enforcar, mas não conseguiu. Antes, Manuel já havia tentado se matar enfiando um prego no peito. O soldado Lucas Dantas também tentou se matar enfiando repetidas vezes uma colher de prata na garganta. O padre foi testemunha também quando o soldado Luís Gonzaga das Virgens e o mestre alfaiate João de Deus do Nascimento subiram da prisão para o Oratório como se tivessem enlouquecido. O frade escreveu: “Pareciam uns verdadeiros loucos”. Os 20 religiosos carmelitas descalços que os acompanhavam tentaram sem êxito ajudar os guardas a acalmar Luís Gonzaga e João de Deus. Os condenados entraram agitados no Oratório. Não falavam. Luís Gonzaga estava de olhos fechados. Foram chamados dois médicos, que atestaram fingimento. Não era a primeira vez que apresentavam esse comportamento, e nas outras duas vezes em que assim procederam na prisão também haviam sido desmentidos pelos médicos. Apesar do diagnóstico desfavorável, eles continuaram fora de si. Foi por isso que, na hora de descê-los do Oratório para formarem o cortejo que os levaria até a forca, os guardas os amarraram nas cadeiras em que foram conduzidos. Desceram os dois, Luís Gonzaga e João de Deus, carregados, e Lucas Dantas e Manuel Faustino, andando. Somaram-se a eles no cortejo outros sete condenados, cuja sentença dada pelo Tribunal da Relação os obrigava a assistir ao suplício dos enforcados, depois de sofrerem 100 chibatadas cada um no pelourinho erguido no Largo do Terreiro de Jesus. O veredicto estabelecera também que os sete presos seriam embarcados em navios da rota da África e abandonados à própria sorte em diferentes locais da costa ocidental da África que não fossem do domínio da rainha de Portugal, D. Maria I. Esta pena foi rigorosamente cumprida, como provam as declarações dos comandantes de navios encarregados de fazer valer a ordem dos juízes do Tribunal da Relação.

À execução seguiu-se o esquartejamento dos corpos. A cabeça de Lucas Dantas foi degolada – como também seriam dos outros três – e depois espetada em um poste no Dique do Desterro. Os outros pedaços foram expostos no caminho do Dique para o Largo de São Francisco, onde residira. No mesmo local foi colocada a cabeça de Manuel Faustino dos Santos Lira. A de João de Deus foi exposta na Rua Direita do Palácio, hoje Rua Chile; suas pernas, os braços e o tronco foram espalhados pelas ruas do Comércio, na Cidade Baixa. A cabeça e as mãos de Luís Gonzaga foram pregadas na forca, a cabeça espetada no patíbulo. O calor dos dias 9, 10 e 11 apressou a decomposição dos corpos. Urubus desceram sobre eles. No dia 11, os Irmãos da Santa Casa de Misericórdia pediram ao governador, D. Fernando José de Portugal, que ordenasse sua retirada para o bem da saúde de todos que habitavam a Cidade do Salvador. No entanto, teriam permanecido em exibição pública até a madrugada do dia 15, quando foram retirados e enterrados em locais até hoje desconhecidos.

A documentação sugere que a composição social da Conjuração Baiana de 1798 ficou circunscrita às médias e baixas camadas daquela sociedade desde os primeiros momentos do inquérito. No entanto, denúncias sobre a participação de homens ricos e poderosos no movimento chegaram a Lisboa, mas não foram adiante. Os homens de posses ofereceram à Justiça alguns de seus escravos, como se eles fossem, junto com outros suspeitos já arrolados, os únicos participantes da conspiração, permitindo que seus senhores saíssem ilesos da investigação. A entrega dos escravos seria uma demonstração de fidelidade à Coroa portuguesa, acreditavam alguns senhores, contra os quais pesavam acusações não só de participação no movimento, mas também de enriquecimento ilícito, contrabando e, principalmente, de atuação duvidosa à frente dos órgãos da administração local. Depoimentos dos réus no inquérito também destacavam o envolvimento desses senhores em reuniões que discutiam os acontecimentos revolucionários na França, bem como o prejuízo do comércio diante do aumento da tributação sobre alguns gêneros de exportação, especialmente o tabaco. A presteza em encarcerar os escravos serviria, portanto, para afastar as suspeitas que eram levantadas no processo. Do lado de cá do Atlântico, a situação dos proprietários não estava menos tensa. Em seus depoimentos, os mulatos Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, Lucas Dantas de Amorim Torres, João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino, acusados de serem os cabeças da sedição, disseram que os senhores faziam reuniões em que discutiam idéias da Revolução Francesa, além de analisarem os prejuízos comerciais e o aumento de impostos sobre produtos exportados. Temerosos, os senhores agiram rapidamente, entregando seus escravos ao Tribunal da Relação, pretendendo assim negar as denúncias que pesavam sobre eles. Manoel José Vilella de Carvalho, para se livrar da acusação de participação nas reuniões, afirmou em depoimento que era “notória” a culpa de Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga em tão “odiosa empresa”, e depois relatou pessoalmente ao governador que fizera “pronta entrega” de dois de seus escravos, como demonstração de fidelidade à Coroa. Outros fizeram o mesmo, e José Pires de Carvalho e Albuquerque não só entregou seus escravos, como também os de seus pares, pois, segundo os depoimentos dos próprios cativos, ele fora pessoalmente às casas de outros senhores para prender seus escravos nas cadeias da Relação dizendo que era para uma averiguação.

Quase todos os escravos presos eram mulatos, nascidos na Bahia, domésticos, sabiam ler e escrever, e circulavam com bastante liberdade pelas ruas da Salvador. Antes que seus depoimentos fossem tomados, um deles morreu na prisão, depois de ter-se alimentado com comida trazida por outro escravo de seu dono. Ainda que as autoridades tenham afastado qualquer possibilidade de crime, os cativos acreditavam no envenenamento a mando do próprio senhor. A coação dos senhores e a manipulação das autoridades locais parecem evidentes. Um dos escravos soube manipular a situação e, não à toa, foi degredado para a África. José Felix da Costa, escravo do ouvidor Francisco Vicente Viana, afirmou que, ao chegar na casa do secretário de Estado, José Pires de Carvalho e Albuquerque, encontrou “um pardo” que o procurava havia dias para convidá-lo a participar de um levante que pretendia instituir uma república, um movimento integrado por “muitos principais”, entre eles o próprio governador. Segundo José Felix, o mulato informara que os regimentos dos pardos, dos negros e da artilharia também participariam do levante, e que os “principais” aguardavam a chegada de duas embarcações que apoiariam a luta. Quando perguntado sobre a causa para um governo republicano, o escravo José Felix afirmou que o pardo lhe dissera que era para evitar o grande furto que o príncipe regente, D. João, cometia contra os negociantes. Apesar de sugerir ser o tal pardo Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, o escravo disse não ter certeza de sua identidade e que não levara a sério a ideia de um levante naquela praça. Por isso não o denunciara às autoridades, mas sim ao seu senhor.

Pessoas ricas participaram das conspirações da Conjuração Baiana porque temiam a implantação das reformas do ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Sousa Coutinho: maior controle da produção, do tráfico e do sistema de arrendamento pela Coroa Portuguesa, incluindo a entrada de outros agentes nessas esferas, com consequente perda de privilégios, além de impostos mais justos, com ricos pagando mais e pobres pagando menos.

O governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal, tinha fama de frouxo, pois na época ele não agia com prevenção e não desenvolvia a contento as funções repressivas que lhe cabiam para refrear as rebeldias dos escravos e a quebra da disciplina entre os militares. Discute-se na historiografia a provável participação do governador em conversas e reuniões contra o domínio de Portugal. D. Fernando José de Portugal muitas vezes não tratou com firmeza pessoas acusadas de conspirarem contra a Coroa Portuguesa.



sexta-feira, 18 de julho de 2014

"Tiradentes esquartejado"

No fim do século XIX o pintor Pedro Américo pintou o quadro Tiradentes esquartejado, obra que representa um dos participantes da Conjuração Mineira. Veja a imagem abaixo:


Pedro Américo havia sido pintor oficial do Império e foi aposentado da Academia das Belas Artes em 1890, pouco depois da Proclamação da República. Pedro Américo opta pela representação realista do esquartejamento. A disposição do corpo sob o cadafalso e a citação do braço pendente da “Pietà” (1497-1500), de Michelangelo, ou da “Deposição de Cristo” (1602-04), de Caravaggio, além da presença do crucifixo, favorecem uma leitura cristã do martírio de Tiradentes. Pedro Américo também despreza a visão triunfante de um condenado desafiador do poder. O artista não representa o herói em seu momento máximo, vivo e calmo diante da morte. O esquartejamento impede a “ressurreição” dos ideais do herói. A ligação entre Conjuração Mineira (1789), Independência (1822) e República (1889) – proposta em outras obras a serviço dos ideais republicanos – não se estabelece. Mesmo buscando o sentido religioso do martírio cristão, é a imagem do cadáver esquartejado que permanece na memória. 

O quadro fazia inicialmente parte de uma série de obras que havia sido planejada pelo pintor, na qual seria exposta a visão que Pedro Américo tinha da Conjuração Mineira: um movimento débil internamente, condenado ao fracasso pelos seus erros, antes mesmo de ser reprimido. O corpo despedaçado, sem vontade própria, alvo da ação de outrem, não seria apenas a denúncia da violência do sistema colonial, mas o ápice do sentimento de fracasso e solidão, presente em toda a série. Pedro Américo sintetiza seu juízo sobre Tiradentes em carta endereçada ao barão do Rio Branco: “(...) audaz e imprudente conspirador, cujo maior defeito foi ser ignorante das coisas e dos homens de seu tempo, tanto quanto de si próprio.”

É preciso lembrar que não existem muitas informações sobre como era o rosto de Tiradentes. De todo modo, ele estava com os cabelos da cabeça e da barba raspados quando foi executado (era um hábito da época – por conta das condições de higiene na prisão, os prisioneiros tinham os cabelos raspados para evitar a proliferação de piolhos). O pintor Pedro Américo – e outros artistas – o pintou com a barba e os cabelos longos, de modo a fazer o inconfidente ficar parecido com a imagem que se tem de Jesus Cristo.

Outros elementos do quadro: o crucifixo; o corpo está no alto do cadafalso, como se estivesse em um altar; as correntes e as algemas usadas para prender Tiradentes expressam a violência do sistema colonial; a corda com os nós afrouxados remete ao ato do enforcamento.



A Conjuração Mineira (1789)

O DESCONTENTAMENTO NA REGIÃO DAS MINAS

- Pesada cobrança de impostos por parte do governo português durante a decadência da produção mineradora na segunda metade do século XVIII.

- Altos preços das mercadorias importadas (tecidos, calçados, ferramentas e outros produtos manufaturados). É preciso lembrar que a colônia estava proibida de produzir tais produtos pelo Alvará de 1785.

- Exclusividade lusitana na ocupação de altos cargos administrativos.

- Proibição da impressão de livros e jornais na colônia, o que permitia às autoridades controlar a divulgação de ideias.

A partir das circunstâncias listadas acima, membros da alta sociedade mineira, incluindo indivíduos chegados recentemente da Europa (onde circulavam as ideias iluministas), começaram a se reunir secretamente em Vila Rica para conspirar contra o governo português. Entre essas pessoas se destacavam os poetas Cláudio Manuel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, os padres José de Oliveira Rolim, Carlos Correia de Toledo e Melo e Manuel Rodrigues da Costa, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire Andrade, os coronéis Domingos de Abreu e Joaquim Silvério dos Reis e o alferes e dentista prático Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes, homem que divulgava o movimento junto ao povo.


REIVINDICAÇÕES DOS REBELDES:

- Governo republicano, com uma constituição inspirada na dos Estados Unidos da América.

- Transformação de São João D'El Rei na capital do novo país (a cidade era grande produtora de alimentos e gado).

- Obrigatoriedade do serviço militar.

- Apoio a industrialização.

- Sobre a escravidão nada ficou definido, pois muitos dos conspiradores eram donos de terras e escravos.

- A bandeira da nova nação teria um triângulo verde sobre um fundo branco e os dizeres Libertas quae sera tamen, - em latim, "Liberdade ainda que tardia".


O DESENROLAR DO MOVIMENTO

O movimento de inspiração iluminista recebeu alguma simpatia, mas não um apoio efetivo da sociedade.

Os líderes do movimento decidiram que, assim que o governo iniciasse uma derrama em Vila Rica em 1789, a revolta começaria com a prisão do governador da região, o visconde de Barbacena. Tiradentes viajaria então ao Rio de Janeiro para divulgar o movimento e buscar apoio, armas e munições. Contudo, a rebelião em Vila Rica não ocorreu porque alguns dos participantes da conjuração denunciaram o movimento em troca do perdão de suas dívidas pessoais, como foi o caso de Joaquim Silvério dos Reis. A derrama foi suspensa e os conspiradores foram presos, ficando encarcerados durante três anos enquanto aguardavam o julgamento. Quando Cláudio Manuel da Costa morreu enforcado na prisão, as autoridades disseram que foi suicídio, mas muitos dizem que ele foi assassinado. Os conspiradores foram condenados ao desterro nas colônias portuguesas da África. Por sua vez, Tiradentes assumiu a responsabilidade pela conspiração e foi condenado à morte. No dia 21 de abril de 1792 ele foi enforcado no Campo de São Domingos, Rio de Janeiro. Posteriormente, o corpo de Tiradentes foi esquartejado e os seus membros foram distribuídos pelas cidades onde ele buscara apoio. A cabeça do alferes foi exposta publicamente em Vila Rica para intimidar possíveis conspiradores.


PARA PENSAR...

Inconfidência Mineira ou Conjuração Mineira?
"O termo inconfidência tem sido utilizado pela historiografia para caracterizar os movimentos de contestação à metrópole ocorridos no Brasil em fins do século XVIII. Cabe distinguir, porém, os termos inconfidência e conjuração, muitas vezes tratados como sinônimos: inconfidência se associa à ideia de traição e infidelidade ao soberano e à metrópole, ao passo que conjuração espelha melhor a perspectiva dos colonos, levados a urdir conspirações em defesa de seus interesses. De todo modo, tenham sido inconfidências ou conjurações, foram movimentos inseridos nos contextos da crise do sistema colonial."

(GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Inconfidência Mineira. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 301.)


Artigo científico sobre a derrama
Quando se estuda a história da região do atual estado de Minas Gerais é comum nos depararmos com a imagem da derrama, ou seja, da cobrança compulsória de impostos sobre a produção de ouro na região durante o período colonial. Contudo, apesar de a derrama aparecer bastante em livros didáticos é preciso dizer que ela não era sempre colocada em prática. Em verdade, vários historiadores têm observado que em diversas oportunidades a derrama era uma forma de ameaçar e amedrontar a população local. Quando ela era anunciada, ela acabava não sendo realizada. A questão em torno da derrama é instigante porque ela aparece na historiografia da Conjuração Mineira. O pesquisador Tarcísio de Souza Gaspar escreveu um interessante texto sobre o assunto no qual discute os boatos sobre a realização da derrama em Minas Gerais e a questão em torno do pagamento dos impostos sobre a atividade mineradora, desvelando os atores sociais mais afetados pelas dívidas para com o governo português. O texto de Gaspar se chama Derrama, boatos e historiografia: o problema da revolta popular na Inconfidência Mineira e está disponível para leitura online por meio deste link.




APROFUNDANDO EM ALGUMAS TEMÁTICAS...

A participação dos ricos na Inconfidência Mineira
Na época da Inconfidência, a dívida de Minas para com a Coroa portuguesa girava em torno de 538 arrobas de ouro. Muitos dos que deviam impostos a Portugal eram ricos – pessoas das elites mineiras – e eles acabaram participando das conspirações contra o governo. Como Portugal queria que todos os habitantes – ricos e pobres – da região pagassem uma parte da dívida, os ricos contavam com o medo da derrama para conseguir o apoio popular quando a revolta armada começasse. Os inconfidentes alimentavam o desejo de se ver livres das cobranças dos tributos e impostos feitas por Portugal, o que lhes garantiria liberdade comercial. Os revoltosos também queriam ter acesso a cargos públicos importantes. Para diminuir o prejuízo e preservar suas riquezas, os principais fazendeiros, exploradores de ouro e diamantes, criadores de gado, militares, contratadores, magistrados e eclesiásticos resolveram aderir ao movimento.

A vida dos inconfidentes condenados ao exílio na África
De acordo com a sentença proferida em abril de 1792, muitos dos principais envolvidos no movimento da Inconfidência Mineira foram condenados ao degredo na África, com exceção dos religiosos, enviados para conventos em Portugal. Alguns morreram assim que chegaram à África, como o poeta Alvarenga Peixoto, o contratador Domingos de Abreu Vieira e o médico Domingos Vidal de Barbosa Lage, mas outros tiveram no exílio a chance de recomeçar suas vidas. Os demais sentenciados ao degredo conseguiram se reerguer trabalhando no comércio ou ocupando cargos importantes na administração local, e alguns até se reintegraram à vida política brasileira.

O caso mais curioso ocorreu com o jurista e poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Condenado ao degredo em Moçambique, ele recebeu tratamento especial assim que lá chegou: ficou hospedado na casa do ouvidor José da Costa Dias de Barros e foi nomeado Promotor do Juízo de Defuntos e Ausentes, cargo que exerceu de 1792 a 1805. Em 9 de maio de 1793, antes de completar seu primeiro ano no exílio, Gonzaga se casou com Juliana de Sousa Mascarenhas, filha do comerciante Alexandre Roberto Mascarenhas. Por ser o único advogado habilitado naquela colônia portuguesa, militou na profissão até seus últimos dias, tendo sido reconhecido em 1800, num documento coletivo que traz a assinatura do próprio inconfidente,como “uma das principais pessoas da cidade de Moçambique”.

Quem também prosperou no continente foi José Álvares Maciel (1761-1804), naturalista formado na Universidade de Coimbra. Assim que chegou a Angola, ele se tornou representante comercial dos negociantes da cidade de Luanda. Por conta de seus conhecimentos de ciências e mineração, foi designado pelo governador D. Miguel Antônio de Melo, em 1797, para descobrir jazidas e instalar uma fábrica de ferro em Golungo. Em março de 1800, com alguma improvisação e o auxílio de 134 escravos, a pequena siderúrgica começou a produzir ferro. Com os bons resultados obtidos, Maciel sugeriu que fossem recrutados trabalhadores em Minas Gerais para fazer o serviço de forma satisfatória. O empenho do inconfidente lhe rendeu elogios do próprio príncipe regente D. João.

As mulheres inconfidentes
Quando o inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto foi preso, a sua esposa Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira atuou com inteligência para impedir que o patrimônio da família fosse confiscado pelo governo (que havia colocado como punição aos inconfidentes o confisco de bens materiais). Para isso, ele fez contato com diferentes pessoas por meio de cartas, incluindo o visconde de Barbacena, governador de Minas.  Após o processo, Bárbara permaneceu com propriedades, entre elas oitenta escravos (que não apareciam descritos na avaliação dos sequestros), móveis e objetos de prata que totalizavam mais de 12 quilos. Com seu temperamento forte, passou a administrar os negócios com firmeza e ampliou bastante o patrimônio deixado pelo marido. Comprando e vendendo escravos e terras, contabilizava lucros líquidos de quase cinco contos de réis ao ano, rendimento bem superior aos de propriedades das redondezas.

Outra mulher que fez parte da história da Inconfidência Mineira foi Hipólita Jacinta Teixeira de Melo. Mulher do coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Hipólita Jacinta tinha pleno conhecimento das discussões sobre o levante que se pretendia fazer em Minas Gerais e participava ativamente em 1789. Ela destruiu uma denúncia completa que Francisco Lopes escrevera para levar pessoalmente ao governador, visconde de Barbacena, delatando o movimento. Também ateou fogo em todos os papéis que julgou poder incriminá-los. Numa carta enviada em maio de 1789 ao marido, acolhido na Fazenda Paraopeba, denunciou a traição de Joaquim Silvério dos Reis e mencionou o destino de outros inconfidentes. Sem mostrar muitas dúvidas, dizia que “se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o Alferes Tiradentes para que vos sirva, ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”. 

Nesse mesmo mês, Tiradentes, Tomás Antônio Gonzaga, o padre Carlos Correia de Toledo e Alvarenga Peixoto foram presos. Dona Hipólita não escapou das punições. Acusada de participar da sedição, perdeu todos os bens e ainda ficou sem direito à partilha conjugal. Inconformada com a situação, escreveu diretamente ao Secretário do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em Lisboa. Argumentava que boa parte do patrimônio sequestrado era uma herança paterna. A estratégia deu certo. Com despacho favorável, recuperou sua fazenda da Ponta do Morro e alguns bens que restaram. E conseguiu resguardar o patrimônio. Em seu testamento, redigido em 27 de abril de 1828, consta que tinha fazendas, lavras e escravos.

Problematizando a imagem de Tiradentes como “herói”
Tiradentes circulava pelos mais variados espaços para difundir as ideias que embasavam a Inconfidência Mineira, demonstrando o seu descontentamento político. Na sociedade colonial, os relacionamentos eram marcados pela oralidade. A troca de ideias, as polêmicas e as críticas ao governo ocorriam basicamente em conversas, que se tornavam públicas por meio de boatos e murmúrios. Nesse quadro, Tiradentes ecoava seu discurso de maneira eficaz. Tiradentes trafegava com desenvoltura pelo submundo da Colônia, em ambientes especialmente favoráveis à divulgação de propostas ousadas. Tavernas e prostíbulos eram os locais por excelência para tramas envolvendo fugas de escravos, negociatas ilícitas e ações subversivas. Afinal, ali se reuniam todas as gentes: homens brancos, escravos, libertos, vadios e militares, principalmente os de baixa patente. Mas a “pregação” de Tiradentes não se limitou ao submundo. Transitava pelas ruas de Vila Rica (atual Ouro Preto), visitava residências de sujeitos proeminentes e repartições públicas. Frequentou, especialmente, o primeiro piso da residência de João Rodrigues de Macedo, onde funcionava um cartório. Macedo era um poderoso comerciante e arrecadador de impostos. Por sua casa passava diariamente um grande número de pessoas, por conta de pendências fiscais ou para o acerto de taxas do comércio. Era a mais imponente construção civil da cidade, um ponto de encontro e comunicação que atraía grandes comerciantes, mineradores e “homens bons” da região. Tiradentes passou por estradas, pousos, fazendas, estalagens, ranchos de abrigo do sol, registros fiscais e muitos outros locais a servir de cenário para as confabulações do alferes, sempre comunicando publicamente suas indignações e sua inquietação.

Tiradentes engravidou Antônia Maria do Espírito Santo, sua amásia, quando ele tinha cerca de 40 anos e ela apenas 16 ou 17. O alferes prometeu à moça que iria se casar com ela, mas não cumpriu. A filha do casal chamava-se Joaquina e sobre ela existem poucas informações, pois as mulheres da época, ao se casarem, adotavam o sobrenome do marido, apagando assim as informações acerca da família de origem. Portanto, é provável que Joaquina tenha se perdido na história ao adotar o nome de casada, e com ela os descendentes de Tiradentes. Contudo, Antônia Maria do Espírito Santo não foi a única mulher na vida do alferes Xavier, homem que, ao que tudo indica, era grande apreciador dos prazeres da carne. Viajante de longas distâncias por conta de suas ocupações profissionais – comerciante, militar, dentista e joalheiro – e bastante chegado à boêmia.

Tiradentes nem sempre foi considerado herói. A primeira celebração do 21 de abril ocorreu em 1881, 89 anos após sua morte. A data só virou feriado nacional em 1890, no mesmo ano em que o 15 de novembro também passou a ser comemorado. Coincidência? Nem um pouco. Os republicanos estavam ávidos por lançar um herói para o novo regime. E esta era uma tarefa difícil, já que a Proclamação teve quase nenhuma participação popular e, como o historiador José Murilo de Carvalho escreveu, “a pequena densidade histórica do 15 de novembro (uma passeata militar) não fornecia terreno adequado para a germinação de mitos”.

Enquanto tentavam exaltar a imagem do marechal Deodoro, de Benjamim Constant e Floriano Peixoto – que sequer foram heróis militares –, Tiradentes vinha aparecendo na literatura e nas artes. O poeta Castro Alves chegou a se referir ao inconfidente como “o Cristo da multidão”. Sua simpatia pela república – nos moldes norte-americanos, e não nos da que foi implantada aqui – e a memória de seu martírio couberam como uma luva na vaga de herói daquele momento político. Todavia, o mártir tinha, como vimos, facetas humanas. De qualquer modo, Tiradentes continua sendo considerado um herói nacional para o Brasil republicano, sobretudo porque o Estado – seja por meio de livros didáticos ou outros meios – tem procurado “preservar” certa imagem do alferes.

Tiradentes não era extremamente pobre. Ele possuía alguns escravos, fazenda e ganhava relativamente bem como alferes e dentista. Essas informações sobre sua condição social ajudam a desconstruir o mito de que Tiradentes foi o único condenado à morte e executado por ser o mais “pobre”. Na verdade, a pena mais severa foi aplicada a Tiradentes porque era ele quem mais divulgava o movimento da Inconfidência Mineira.

Os restos mortais de Tiradentes
Não se sabe o destino dos ossos do alferes. A vila de Sebollas (RJ) abriga um pequeno museu onde está guardada uma ossada que dizem ser de Tiradentes, mas muitos pesquisadores discordam que aqueles ossos sejam do inconfidente.


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