(*)
Texto escrito por Luciano Figueiredo [1]
e originalmente publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional,
no dia 9 set. 2007.
Um
escrito anônimo circulou em Portugal nos idos de 1701. Abusando do destempero,
denunciava o excesso de impostos que os moradores do Brasil pagavam: “Tributos
no sal, nos vinhos, aguardentes, azeites, couros e tabacos, e dez por cento de
tributos nas fazendas de mar em fora para sustentar o Presídio!”. Mais adiante,
o texto incriminava sem rodeios os funcionários que serviam ao soberano. Eles
pareciam exigir dos colonos: “venha para cá o ouro de sua majestade que lhe
queremos pôr a mão por cima, e os bugios [i. é macacos] do Brasil que se
esfolem, e das próprias peles paguem os presídios”. O grito de socorro buscava
os ouvidos do Rei, ao apelar “Aqui del‐rei, aqui del‐rei
que nos acuda, que isto não”.
Portugal
não deu trégua aos moradores da América. Farejava oportunidades de tributar
onde germinassem riquezas. Os engenhos começavam a moer cana‐de‐açúcar
e já apareciam taxas para as caixas de açúcar; uma nova taberna abria suas
portas e os barris de vinho chegavam mais caros. O gado que pisava os pastos
exigia do seu dono uma contribuição; os carregadores que palmilhavam os
caminhos deixavam nas contagens um pagamento pelos secos e molhados que as
tropas levavam. Embarcar mercadorias para a Europa e trazer dali azeite,
bacalhau e sal custava uma fortuna, paga aos cofres da Companhia de Comércio
que fazia esse transporte com exclusividade sob patrocínio régio. Novas
riquezas, novos impostos. Um veio de minério era ferido e lá vinha o fiscal
para conseguir o “quinto” que deveria ser oferecido ao Rei. Minas Gerais no
século XVIII foi, aliás, o paraíso da imaginação tributária. Ali chegaram a
existir mais de 80 impostos simultaneamente!
Esse
fiscalismo assombrou o Brasil. Mas assombravam mais ainda as reações da
população. Um furacão de revoltas contra os impostos varreu a colônia. Revoltas
mas, também, rumores, pasquins, abaixo‐assinados, conspirações.
Não era preciso muito esforço para uma revolta estalar. O anúncio de um novo
imposto, a suspeita de açambarcamento de gêneros básicos pelos comerciantes
monopolistas, o boato de aumento de uma taxa: qualquer fagulha espalhava uma
onda de violências.
As
águas calmas da Baia de Guanabara no dia 8 de novembro de 1660 não pareciam
indicar os distúrbios que aconteceriam naquela madrugada. A situação na região
estava bastante tensa. Grupos poderosos se indispuseram com Salvador Correia de
Sá e Benevides, o governador, suspeito de amealhar fortunas com as rendas da
cidade e acusado de administrar cercado de um pequeno grupo de familiares. Sua
ligação com os jesuítas também não era nada bem vista. Parecia grossa
provocação que, em uma região com grande uso de escravos, o governador se
colocasse ao lado dos padres na condenação da escravidão dos nativos.
Por
outro lado a posição marítima da cidade custava caro aos moradores do Rio,
obrigados a arcar com pesadas taxações para as despesas militares. Suspeitava‐se
ainda que esses recursos eram desviados pelo governador para negócios privados.
Só quem não parecia preocupado com isso era o titular da capitania. Sem pudor
havia lançado há pouco uma nova taxa sobre os prédios da cidade para pagar os
intermináveis gastos com a defesa.
Aparentemente
tranquilo com tudo que se passava, o governador viajou para inspecionar regiões
da capitania vizinha. Sua imprudência custou caro. Ao deixar o comando da
cidade nas mãos do interino deu o sinal para a revolta. Fartos de tantos
impostos e tamanhos constrangimentos os proprietários de terra do recôncavo
promovem uma reunião de milhares de pessoas no Paço da cidade nos primeiros
dias de novembro. O povo ocupa a câmara, derruba todas as autoridades do
governo pela força, cerca as igrejas e dispara o sino. A palavra de ordem
“Liberdade” ganha as ruas, acompanhada de brados de “Viva a Vossa Majestade”,
mostrando total lealdade com o soberano português. Elegem novos representantes,
nomeiam administradores e aprovam uma constituição com princípios que deveriam
servir para o novo governo.
Reformas
imediatas são implementadas, dentre elas o alívio tributário. Durante 6 meses
uma das cidades mais importantes do Império colonial esteve governada por seus
moradores sem o consentimento ou escolha régia, até que Salvador de Sá
conseguisse reagir e retomar a cidade. Como era comum acontecer, ele cobra caro
pela ofensa: prende dezenas de rebeldes e pendura na forca um dos líderes,
Jerônimo Barbalho.
A
experiência inaugura uma sucessão de revoltas em reação à cobrança de impostos.
No Maranhão as altas taxas cobradas para embarque de mercadorias nos navios da
Companhia de Comércio, que monopolizavam a distribuição de gêneros do Grão‐Pará
e Maranhão, também não eram bem aceitas. Aliado a isso faltavam escravos
africanos para tratar as lavouras. Em 1684, outra vez o afastamento de um
governador reabre a temporada de protestos. Liderados por Manuel Beckman,
grande proprietário rural, os amotinados juntam os moradores com o apoio dos
soldados e estudantes das escolas, prendem os jesuítas e tomam o poder. O passo
seguinte foi a suspensão do monopólio e sua taxas, a expulsão dos jesuítas e a
deposição do governador. Somente um ano depois um novo administrador chegaria
para retomar o poder com delegação do soberano. Para manter o costume enforca
os principais líderes, açoita e degreda outros envolvidos e restabelece o
monopólio e suas taxas.
Ao
longo do século XVIII a inquietação dos moradores não foi menor. A dependência
do reino com as rendas do Brasil se aprofunda e, com o crescimento do comércio
marítimo e da economia colonial, graças ao ouro e metais descobertos no centro‐sul,
prospera a incontinência tributária.
Em
Salvador, mal assumira o posto de governador‐geral do Brasil (1711),
Pedro de Vasconcellos leva um susto ao ver a sessão que presidia na câmara
municipal ser interrompida com os gritos dos rebeldes que invadem a sala sem a
menor cerimônia. Os boatos de aumento dos valores cobrados nos impostos sobre o
comércio de escravos com a África e do preço do sal exigiam uma resposta com
força. A multidão formada por marinheiros soldados comerciantes, padres,
oficiais mecânicos e homens pobres controlou a cidade por todo o dia. Atacou a
casa do arrematante do sal que escapou de ser trucidado por que recebeu antes o
aviso do perigo iminente. Seus móveis são jogados na rua e seus bens
arruinados, inclusive os gêneros que guardava no depósito térreo, como sal e
bebidas, espalhados pela rua. Cercado e sem alternativas o governador no mesmo
dia garantiria à população que jamais passou pela sua cabeça aquele tipo de
mudança.
Nessa
mesma época, nas sinuosas cidades de Minas Gerais as autoridades também passariam
maus bocados quando tentaram cobrar com rigor o quinto sobre o ouro. Ninguém
contestava o direito régio de recolhê‐lo, mas ninguém deixou
de reagir a cada anúncio de mudança na forma de cobrança. Fora assim desde os
primeiros tempos naquela região, onde a terra, como disse um dos governadores,
“evapora tumultos” e “a água exala motins”. O anúncio da instalação de casas de
fundição em 1719 inquietou os moradores de Vila Rica, a sede da capitania. As
expectativas não eram das melhores, uma vez que a fundição se tornava
exclusividade da administração régia e tornava‐se proibido o uso do
ouro em pó o que dificultava a vida dos que fugiam do pagamento de 20% sobre o
metal extraído.
Dos
morros próximos descem multidões iradas que percorrem as ruas da cidade aos
gritos, destruindo papéis do governo. Dirigem‐se até o governador que
busca abrigo na cidade vizinha. Seguem para lá e o obrigam a suspender o
projeto das casas de fundição. Assim que a tranquilidade volta a Vila Rica o
governador instaura um processo‐relâmpago e condena os
líderes à morte. Felipe dos Santos, um dos principais líderes, não consegue
fugir a tempo e é submetido a suplícios e dilaceração do corpo com requintes de
crueldade.
Não
faltou violência nos protestos nem tampouco na reação das autoridades diante da
recusa organizada dos moradores da colônia em aceitar a carga tributária.
Aparentemente o desassossego generalizado com o excesso de impostos e tantas
revoltas desenhava uma situação caótica e até radical. Mas, ao contrário do que
parece, esses movimentos preservavam a autoridade máxima do Rei. Acima do bem e
do mal, era a ele a quem os rebeldes sempre apelavam. Culpados aos olhos dos
colonos eram os administradores que traíam o soberano justo e misericordioso
adotando traiçoeiramente medidas injustas. As revoltas aconteciam em nome do
rei.
Os
povos que viviam no Brasil acionavam um direito de resistência à injustiça
fiscal que havia sido construído longe dali, na própria metrópole, que agora
parecia desconhecer sua própria história. Quando, na década de 1630, o Império
espanhol, sob aperto financeiro, resolveu apertar seus súditos, dentre eles os
portugueses, cujo reino encontrava‐se sob a chamada União
Ibérica (1580‐1640), e cobrar tributos, uma onda de revoltas
toma conta de Portugal a partir de Évora em 1637. Grandes tumultos e
mobilizações populares com envolvimento das elites se espalham pelo território
até que a independência fosse restaurada em 1640. Nesse processo, para
justificar a desobediência com o soberano e a quebra da lealdade, os
portugueses elaboraram a ideia de que toda rebelião contra a tirania era justa.
Uma
das formas habituais da tirania eram os tributos odiosos, que atropelavam
direitos tradicionais e certos princípios do bom governo. Impostos não deveriam
levar os súditos à ruína material, assim como não poderiam ser criados sem
consulta e por tempo indeterminado. Os recursos arrecadados deveriam ser
destinados ao mesmo fim que justificou a criação do imposto. Tampouco as
cobranças poderiam ser violentas. Eram regras de ouro que qualquer monarquia,
se quisesse governar com tranquilidade, deveria cuidar. Um dos manuais de
governo mais consultados pelos soberanos católicos de Portugal dedicava um
capítulo especial à forma de tributar. Dizia “Com igual precisão, o Rei
astuto, / Podeis tirar, que a abelha vos ensina, / Docemente dos povos o tributo. / E
se um reino é a flor mais peregrina; / Se quando esta se perde não dá fruto, / Não
lhe busqueis a última ruina.”
Mas
nada disso parecia possível de ser seguido na política fiscal aplicada pela
metrópole portuguesa no Brasil. Ou bem se tributava e recebia os benefícios da
colonização ou bem se governava. Entre o ideal do príncipe perfeito e as
necessidades de caixa, Portugal não vacilou em escolher a segunda opção. Muitas
vezes, contudo, foi o rumor das ruas que o ajudou a driblar “a última ruína” em
meio a esse frágil equilíbrio.
[1] Luciano Figueiredo é professor de História da
Universidade Federal Fluminense, editor da Revista de História da Biblioteca
Nacional e autor de Rebeliões no Brasil colônia (Editora Jorge Zahar, 2005).