A
chegada dos espanhóis ao continente americano e o posterior processo de
conquista do território foram eventos que deram origem a distintas narrativas. Vejamos alguns deles...
O PONTO DE VISTA DO CONQUISTADOR: O RELATO DE CORTEZ
O
próprio Hernan Cortez, responsável pela conquista do México, registrou a sua
versão da luta dos espanhóis contra os astecas. Entre os acontecimentos que são
descritos nessa narrativa estão: a ida dos espanhóis a Tenochtitlán (a capital
asteca, onde governava o líder daquele povo àquela época, Montezuma), o contato
com os índios (que, segundo o relato de Cortez, às vezes era amistoso, às vezes
conflituoso), o contato com o líder asteca, Montezuma.
É
interessante perceber que Hernan Cortez procura em algumas passagens destacar a
sua própria determinação em chegar a Tenochtitlán. Ademais, há em tal relato a
tentativa de justificar o domínio espanhol sobre aquele território: ao
descrever um discurso de Montezuma, Cortez afirma que o chefe dos astecas teria
dito que o rei espanhol seria o “senhor natural” dos astecas (Cf. CORTEZ, 1986,
p. 41).
Ainda
sobre Montezuma, Cortez conta como o senhor de Tenochtitlán se deixou dominar e
até ajudou os espanhóis oferecendo informações sobre o território. Ainda de
acordo com o conquistador espanhol, tal processo foi interrompido por causa da
chegada de outro agente espanhol, Paniilo de Narváez, que se dizia a mando da
Coroa Espanhola e que iria tirar Hernan Cortez do comando da conquista do
território. Segundo o relato de Hernan Cortez, foi durante o seu conflito
contra Narváez que os índios de Tenochtitlán se rebelaram, dando início a uma
guerra na qual morreram espanhóis e o próprio Montezuma (ele recebeu uma
pedrada enquanto tentava pedir aos índios que parassem de guerrear, segundo Cortez).
Ao
narrar o processo da conquista do México, Cortez fala da dificuldade enfrentada
pelos espanhóis ao lutarem contra os astecas. O conquistador espanhol também
lembra as alianças que foram feitas com povos nativos inimigos de Tenochtitlán,
fazendo questão de registrar a sua valentia/coragem pessoal naquela guerra. De
fato, em seu relato Cortez procura elaborar a imagem de si próprio como um
grande herói.
No
que diz respeito à relação entre a linguagem utilizada na elaboração da
narrativa e a realidade descrita, Cortez afirma ter uma certa dificuldade em
encontrar as palavras adequadas para descrever a cidade de Tenochtitlán e os
acontecimentos. De qualquer modo, o espanhol procura reforçar a ideia de que
está tentando em seu relato “ser o mais fiel possível aos acontecimentos”
(CORTEZ, 1986, p. 62), ou seja, ele quer se mostrar um narrador imparcial, que
comunica apenas a verdade dos fatos.
É
a partir dessa pretensão que Cortez procura justificativas para dominar
Tenochtitlán. Segundo ele, era preciso punir a traição dos índios que se
rebelaram contra os espanhóis, ampliar a fé católica, lutar contra aquela gente
“bárbara” e garantir a sobrevivência dos espanhóis que, de acordo com o seu
ponto de vista, estavam ameaçados naquelas terras.
No
que concerne aos conflitos propriamente ditos, Cortez afirma em várias
passagens que tentou negociar a paz, mas que os índios de Tenochtitlán não se
rendiam. Todavia, é preciso salientar que, em certos momentos do relato, Cortez
não deixa de vibrar com as vitórias e os massacres promovidos pelos espanhóis.
A vitória espanhola foi possível, segundo Cortez, graças à estratégia de cerco
a Tenochtitlán, ao uso de cavalos e armas de fogo e às alianças com povos
indígenas que eram inimigos dos astecas.
Outro
elemento importante do relato de Cortez é a sua relação com a religião
católica. Em diversos momentos do texto, o conquistador espanhol agradece a
Deus pelas vitórias nas batalhas. Por mais terríveis que tenham sido alguns dos
seus atos, Cortez procura sempre se justificar, tentando construir uma imagem
de si mesmo como um herói, bem como a ideia de superioridade dos espanhóis em
relação aos indígenas (vistos como traiçoeiros).
OS RELATOS DE ORIGEM INDÍGENA
Se
o espanhol deixou registrada a sua versão da conquista do México, os próprios
astecas também transmitiram o seu ponto de vista sobre aqueles acontecimentos.
Ao recuperar alguns relatos astecas sobre a conquista, o pesquisador Miguel
León-Portilla (1991) nos mostra como a dominação espanhola foi vista pelos
indígenas. Nas narrativas de origem asteca, aparece em lugar de destaque a
estratégia usada por Hernan Cortez para se comunicar com os astecas: o
conquistador espanhol falava na sua própria língua com Jerónimo de Aguilar (um
náufrago que se estabelecera em Yucatán e que havia aprendido o idioma maia),
que falava na língua maia com a índia Malinche que, por sua vez, finalmente
traduzia a mensagem para a língua asteca (Malinche falava os idiomas maia e
asteca).
Segundo
os testemunhos indígenas, o líder asteca Montezuma teria achado inicialmente
que a chegada dos espanhóis era o retorno de Quetzalcóatl e dos demais deuses
que o acompanhavam. Todavia, tão logo se revelou o objetivo daqueles homens tão
diferentes que chegavam a Tenochtitlán, bem como a violência que estavam
dispostos a praticar para conquistar o território, os astecas passaram a chamar
os espanhóis de popolocas, termo que pode ser traduzido por “bárbaros”.
Em
tais relatos astecas da conquista espanhola também aparecem os presságios que
teriam surgido nos anos anteriores e que diziam respeito à chegada dos
espanhóis e à destruição de Tenochtitlán. Alguns dos presságios descritos
nessas narrativas são: uma espiga de fogo no céu, o incêndio em um templo, um
grito de mulher no meio da noite. Todos esses presságios seriam sinais da tragédia
que seria trazida pelas mãos dos conquistadores espanhóis. Nas narrativas
astecas, a existência de tais presságios estão relacionadas à angustia, ao
espanto e ao terror sentidos por Montezuma quando da chegada dos espanhóis (Cf.
LEÓN-PORTILLA, 1991, p. 27-29).
É
interessante observar como os astecas registraram a sua versão acerca da guerra
entre o povo de Tenochtitlán e os espanhóis. Segundo os relatos astecas, Cortez
teria saído de Tenochtitlán para combater Narváez, mas alguns espanhóis ficaram
na capital asteca e, sob a liderança de Alvarado, atacaram indígenas em um
templo religioso, fato esse que provocou a revolta asteca contra a presença
espanhola. Tal narrativa é instigante porque no relato feito por Hernan Cortez
o ataque de Alvarado aos indígenas não aparece com muito destaque. Cortez até
afirma que os índios se revoltaram contra os espanhóis, mas não deixa muito
claros os motivos de tal rebelião. É como se, para Cortez, os índios de
Tenochtitlán fossem traiçoeiros por terem se aproveitado de sua ausência da
cidade, enquanto ele combatia Narváez.
Cabe
mencionar ainda que, como os astecas se viam como um povo destinado a subjugar
outros povos, a derrota para os espanhóis significou um grande “trauma”. De
fato, o que se apreende dos testemunhos astecas da conquista espanhola é que o
povo de Tenochtitlán sentiu muito a sua derrota, a perda do modo de vida, da
cultura e a “morte” dos seus deuses. A descrição do sofrimento causado pela
dominação espanhola (a exploração, os trabalhos forçados, etc.) não é uma
exclusividade das narrativas dos astecas, pois nos relatos de origem maia tal
elemento também aparece. Aliás, nas narrativas maias sobre a conquista
espanhola também são feitas menções a presságios da vinda dos espanhóis (as
profecias) que teriam ocorrido tempos antes da conquista espanhola.
Por
sua vez, a queda do Tahuantinsuyu – o Estado inca localizado na América do Sul
– também foi registrada segundo o ponto de vista indígena. De acordo com os
relatos incas, a morte do chefe inca Huayna Cápac em 1525 (aproximadamente)
provocou a divisão dos territórios incas com a guerra entre Huáscar, o herdeiro
legítimo, e Atahualpa, que residia em Quito e também era filho de Huayna Cápac.
Com o desenrolar dos conflitos, Huáscar tornou-se prisioneiro de Atahualpa e,
portanto, quando os conquistadores espanhóis Francisco Pizarro e Diego Almagro
chegaram à América do Sul encontraram os incas divididos.
Pizarro
foi à Espanha obter a autorização por parte de Carlos V (líder do império
espanhol) para conquistar a região. Segundo as narrativas de origem inca, ao
saber da chegada dos homens brancos, Atahualpa teria pensado que fosse o
regresso dos deuses, a volta de Huiracocha. Entre o temor, a curiosidade e a
dúvida, Atahualpa permitiu o avanço progressivo dos europeus pelo território. O
líder inca confiava nos seus 40 mil homens armados.
Já
sobre o contato entre Atahualpa e os espanhóis, os relatos incas registram que
Pizarro e o chefe inca conversaram com a ajuda de um índio intérprete.
Atahualpa teria dito que era um grande senhor e que acreditava nos seus
próprios deuses e que, para os incas, eles não eram “falsos” tal como diziam os
espanhóis. Atahualpa teria até arremessado para longe uma bíblia que lhe fora
entregue pelo frei Vicente de Valverde. De acordo com a memória inca, foi após
de tal gesto que os espanhóis atacaram e aprisionaram Atahualpa.
O
chefe inca tentou comprar sua liberdade com ouro, porém, mesmo após o pagamento
do resgate, os espanhóis o acusaram de idolatria, incesto, adultério, etc. e o
condenaram à morte, matando-o em 1533. Os incas ofereceriam resistência à
dominação espanhola por 40 anos. Os espanhóis até tentaram apaziguá-los
coroando o meio irmão de Atahualpa, Manco II. Contudo, Manco II se rebelou
contra os conquistadores. Houve então várias guerras e os incas impuseram
dificuldades aos espanhóis.
Para
piorar a situação dos espanhóis, Francisco Pizarro e Diego Almagro começaram a
brigar entre si. Após os conflitos, Pizarro venceu Almagro e o condenou à
morte. Anos depois, o filho de Almagro matou Pizarro. Em 1545 ocorreu a morte
de Manco II, e o seu sucessor no posto de chefe inca foi seu filho Sayri Túpac,
que se entregou aos espanhóis e morreu envenenado. Os incas coroaram o seu
irmão, Titu Cusi Yupanqui, que aumentou os ataques contra os espanhóis.
Yupanqui morreu de pneumonia em 1569, sendo sucedido pelo seu irmão Túpac
Amaru, o último chefe inca. Túpac Amaru foi preso e morto em 1572, quando os
espanhóis finalmente concretizaram o seu domínio sobre o território inca. Todos
esses episódios aparecem nas narrativas de origem inca sobre a conquista
espanhola do território, processo ao qual os indígenas procuraram resistir.
A RESISTÊNCIA INDÍGENA
A
conquista espanhola da América foi marcada por muita violência, a qual os
espanhóis – como Hernan Cortez, por exemplo – tentavam justificar a partir da
“necessidade” de dominar os “bárbaros” povos indígenas que viviam fora dos
dogmas da fé católica. No “encontro” entre europeus e índios, os homens do
Velho Mundo pensavam estar diante de uma cultura inferior à europeia e que, por
isso, tinha que ser destruída. De fato, a imagem do índio para o europeu foi
quase sempre uma imagem negativa.
Todavia,
cabe mencionar aqui um personagem dessa história que assumiu contornos mais
complexos. Falamos do frei Bartolomé de Las Casas (1474-1566), religioso que,
apesar de ser um defensor da cristianização, assumiu uma postura contrária à
escravização e ao extermínio dos povos nativos do continente americano.
Por
um lado, Las Casas procurou construir uma “imagem servil do índio”. Os povos
originados da América pré-colombiana seriam medrosos, destinados à derrota,
pusilânimes, fracos, dóceis, inocentes, humildes, pacíficos e obedientes a tal
ponto que pareciam ser verdadeiros imbecis. Por outro lado, o frei registrou também em seus escritos as habilidades e a inteligência
dos índios, as quais ele admirava. Las Casas até valorizou em certos momentos a
valentia e a capacidade de resistência indígena à conquista espanhola do
território, embora também tenha criticado o fato de muitos índios terem traído
o seu próprio povo, como a índia Malinche, amante e intérprete de Hernan
Cortez.
É
importante dizer que quando se fala em resistência indígena à dominação
espanhola, muitas vezes se restringe tal processo à resistência por meio da
guerra, da força. Exemplos notáveis disso foram a resistência dos índios
araucanos, que só aceitaram a paz no século XIX, e a revolta liderada pelo
cacique Enriquillo em Santo Domingo (1519-1529). Todavia, a resistência
indígena ao conquistador europeu assumiu muitas vezes um caráter “sub-reptício”,
ou seja, ela se dava de maneira dissimulada, escondida, parecendo ser uma coisa,
mas significando outra. Em outras palavras, por trás da aparente passividade
indígena registrada por Las Casas, houve sim várias formas de resistência.
Uma
primeira forma de resistência sub-reptícia foi o silêncio. Os índios evitavam
falar, principalmente em castelhano. O silêncio era não só um sinal do “trauma”
por causa da derrota, mas também uma forma de preservar os segredos da própria
cultura. Os índios também agiam com teimosia para conseguir algo que era do seu
interesse, e não deixavam os colonizadores espanhóis em paz até que alcançassem
um determinado objetivo. A mentira, por sua vez, era uma estratégia usada para
enganar os espanhóis: os índios diziam-se pobres para não pagar tributos aos
espanhóis; também diziam que havia metais preciosos em lugares distantes apenas
para fazerem os espanhóis perderem tempo indo procurar tais riquezas.
Outro
comportamento indígena que tinha uma finalidade de resistência era a bebedeira.
Se em muitas sociedades pré-colombianas do continente americano o consumo
exagerado de bebidas alcoólicas era severamente punido, a bebedeira se tornou
um hábito comum entre os índios após a chegada dos europeus, que não conseguiam
controlar o comportamento dos nativos em relação à bebida. Enquanto estavam
bêbados, os índios aproveitavam para reverenciar seus próprios deuses, mesmo
estando vestidos como espanhóis/cristãos. Os membros da Igreja católica muitas
vezes se sentiam perdidos, sem saber como, e se, deviam punir tais atitudes, já
que os índios que se embriagavam não demonstravam ter muita consciência do que
estavam fazendo.
Enfim,
a preguiça era uma outra forma de resistir ao conquistador. Os índios não se
mostravam muito interessados em trabalhar para os espanhóis. Afinal, por que
eles produziriam muitas riquezas para os invasores?
Todos
esses comportamentos – o silêncio, a teimosia, a mentira, a bebedeira e a
preguiça – eram vistos pelos espanhóis como traços negativos dos índios. Contudo,
Bartolomé de Las Casas não via tais atitudes como negativas, mas como
relacionadas ao modo de vida dos índios. Os índios tinham, de fato, um outro
ritmo de trabalho, não tinham um apetite ilimitado pela riqueza. Além disso, os
povos nativos valorizavam os momentos de lazer.
Mais
que isso, tais comportamentos indígenas faziam parte do que pode ser chamado de
“a simulação dos vencidos”, uma forma de resistência que se baseia em mentiras.
Os índios se mostravam como cristãos no espaço público, mas continuavam com
suas práticas religiosas no espaço privado. Assim, eles conseguiram por vezes
preservar seu idioma e seus hábitos. Alguns índios até aprendiam o castelhano e
também a usar as leis espanholas a seu favor (sobretudo os índios que aprendiam
a ler e a escrever). Por outro lado, nem todos os espanhóis se dedicavam muito
a aprender as línguas indígenas, e os espanhóis ficavam extremamente irritados
quando os índios falavam exclusivamente nas línguas nativas perto deles: não
era possível saber se os índios estavam caçoando dos espanhóis ou preparando
alguma armadilha.
As
línguas nativas eram usadas pelos índios ao fazerem suas festas e rezas. Também
ocorria a mistura das duas religiões, onde Jesus Cristo tornava-se apenas mais
um ídolo entre os vários que os índios cultuavam. Rezando na sua própria língua
e misturando os santos católicos com suas próprias divindades, os índios pediam
proteção contra os espanhóis. Graças a estratégias desse tipo os índios
preservaram elementos da sua cultura e a sua própria identidade coletiva. Se
tal “simulação” foi uma forma de luta, a resistência cultural pode ser vista
como uma vitória. De fato, se por um lado os povos indígenas da América foram
vencidos (conquistados) pelos europeus, por outro lado eles foram vencedores ao
conseguirem preservar partes de sua cultura.
Sem
sombra de dúvidas, a “simulação dos vencidos” e a resistência cultural indígena
nos mostram que o projeto de sociedade organizada, católica e obediente que os
espanhóis procuraram concretizar na América não se tornou realidade. O próprio
Las Casas e outros cronistas espanhóis da época registraram que não só os
índios, mas também os filhos de espanhóis nascidos na América eram
desobedientes às leis vindas da Espanha. A nova sociedade hispano-indígena,
segundo os cronistas do período, já nascia fracassada, seja por causa da
resistência indígena, seja por causa da mestiçagem que “piorava”, segundo
aqueles europeus, a natureza dos homens nascidos em solo americano.
BIBLIOGRAFIA
BRUIT,
Héctor H. Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. São Paulo:
Unicamp: Iluminuras, 1995.
CORTEZ,
Hernan. A Conquista do México. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Porto
Alegre: L&PM, 1986.
LEÓN-PORTILLA,
Miguel. A Conquista da América Latina vista pelos índios: relatos astecas,
maias e incas. 4. ed. Tradução de Augusto Ângelo Zanatta. Petrópolis: Vozes,
1991.