“Os homens nascem e permanecem livres e iguais
em direitos”. O Artigo Primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão cairia bem em qualquer discurso da classe política atual. Mas foi
escrito há mais de dois séculos pelos revolucionários franceses de 1789. E,
naquela época, os conceitos de liberdade e igualdade não eram compreendidos da
mesma forma que hoje.
Muito antes do Liberté,
Egalité, Fraternité –
um lema a serviço da retórica política do momento – os filósofos iluministas se
dedicavam a complexas discussões para dar novos sentidos à humanidade em suas
relações sociais. Em seu monumental tratado Do espírito das leis (1748), o Barão de Montesquieu
(1689-1755) explica que, numa sociedade regida por leis, ser livre não
significa fazer tudo o que poderíamos desejar. A liberdade “só pode consistir
em fazer o que se deve querer” e em “nunca ser constrangido a fazer o que não
se deve querer”. Ou seja, ser “livre” diz respeito não apenas à vontade, mas
também ao dever. O arbítrio – isto é, a decisão sobre o que deve ser feito –
jamais se manifesta fora da alçada do direito. Em sua definição lapidar: “A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.
É diferente do que pensava Aristóteles (384-322
a.C.) ao tratar da liberdade na Ética a Nicômaco: uma capacidade encontrada na alma do
indivíduo. Na França do Iluminismo, o que está em questão é o estatuto político
e social do homem, cuja existência depende das relações estabelecidas com os
outros homens. Ser livre, nesse sentido, é ser livre relativamente aos outros,
de acordo com as leis da sociedade. Ideia que permanece na sabedoria popular:
“Minha liberdade termina onde começa a do outro”. Eis uma noção elementar de
justiça.
Em termos históricos, a referência remonta aos
primórdios da Grécia. No século V a.C., havia a distinção entre homens livres e
escravos, e a divisão social da pólis determinava que somente os livres
poderiam decidir acerca das leis justas. No século XVIII francês, a transição
do Antigo Regime para a Primeira República foi pautada por uma releitura dessa
virtude cívica dos antigos.
“A liberdade reside no poder que um ser
inteligente possui para fazer o que quer, em conformidade com sua própria
determinação”, afirma o verbete “Liberdade” da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (o volume da
letra “L” foi publicado em 1765). A sutileza da definição está nas palavras
finais: a ação do ser livre está submetida a uma regra, mesmo que esta seja a
sua própria determinação. Condição que parece nos remeter ao livre-arbítrio dos
cristãos (uma autodeterminação incondicional), mas tal leitura seria uma
simplificação do problema. Até porque os filósofos iluministas criticavam o
conceito de livre-arbítrio justamente pelo absurdo da escolha feita sem
qualquer condição prévia. Seria um efeito sem causa.
Este foi o motivo pelo qual tantos pensadores
preferiram adotar a perspectiva do chamado “direito natural”, defendida por
teóricos desde Cícero (106-43 a.C.) na Roma antiga até Locke (1632-1704) na
modernidade. Para eles, a sociedade deve ser determinada não apenas pelas leis
civis (feitas pelos homens), mas também pela “lei natural”: as noções de certo
e errado que já estariam inscritas na natureza antes mesmo do surgimento das
sociedades. Por causa das leis naturais, na época, uma afirmação como “o homem
nasce e permanece livre” não era tão incondicional como a entendemos
atualmente.
Se o conceito de liberdade não exclui o de
necessidade, quais leis – civis ou naturais – determinam as escolhas dos
agentes livres? Para ilustrar esta questão, Voltaire, no Dicionário
filosófico (1764),
apresenta um curioso diálogo no verbete “Liberdade”:
“A – Uma bateria de canhões atira junto às
nossas orelhas; sois livre de a ouvir ou não ouvir?
B – Sem dúvida que não posso deixar de a ouvir.
A – Desejais que esse canhão arranque vossa
cabeça e a da vossa mulher e do vosso filho, que passeiam convosco?
B – Que proposta me fazeis? Não posso, enquanto
estiver em perfeito juízo, desejar tal coisa; eis o que me é impossível.
A – Bom; vós ouvis necessariamente este canhão
e necessariamente desejais não morrer, vós e a vossa família, de um tiro de
canhão durante o passeio; não tendes o poder de não ouvir nem o poder de querer
permanecer aqui.
B – É evidente.”
A conclusão do personagem A é também evidente:
“Em que consiste pois a vossa liberdade”, explica para B, “senão no poder que a
vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia com
absoluta necessidade?”.
Para o filósofo materialista Claude-Adrien
Helvétius (1715-1771), o conceito de liberdade era baseado na crença iluminista
do progresso da razão. Na obra Do espírito (1755),
Helvétius expõe que, muito embora o homem seja uma máquina movida pelo
interesse calcado em necessidades físicas (busca do prazer e fuga da dor),
ainda assim poderemos falar em virtude se definirmos a liberdade como um
interesse bem compreendido: um objeto escolhido pela razão e não apenas por
impulso ou instinto. Decorre daí a sua máxima: “Livre não passa de um sinônimo
de esclarecido”. Dito de outra forma, o interesse pode ser educado para buscar,
para além da satisfação imediata do corpo, um prazer mais duradouro, que
incluiria até mesmo o bem de todos com quem nos relacionamos, chamado
“felicidade”.
No fim das contas, o que se desejava era a
“autonomia”: o governo de si mesmo mediante leis estabelecidas pelo bom uso da
razão. Este conceito aparecia tanto nos filósofos materialistas quanto nos
“espiritualistas”. Rousseau, que se considerava cristão, não admitia o
princípio teológico do livre-arbítrio e afirmava que “o impulso do puro apetite
é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade”.
Nesse ponto, inspirou o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a autonomia
condicionava a liberdade a uma lei moral universal: “Age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal”.
Se nem mesmo a liberdade pode ser plena, já dá
para imaginar que a igualdade, para os iluministas, também era relativa. Basta
saber que o artigo citado da Declaração de 1789 é uma referência clara a
Montesquieu e a Rousseau. O primeiro explica que a liberdade republicana
consiste num amor à condição em que todos são iguais perante a Constituição: “O
amor à república, numa democracia, é o amor à democracia; o amor à democracia é
o amor à igualdade”. E seu contraponto é a monarquia, regime no qual não é
possível falar em igualdade, onde cada um busca a superioridade em detrimento
da felicidade alheia. Na monarquia não pode haver autonomia pelo fato de a lei
beneficiar mais a classe que detém o poder. Isto leva a um quadro social
instável, no qual as pessoas pertencentes a condições inferiores desejam se
tornar senhoras das que se encontram em condições superiores.
Nem por isso Montesquieu considera que a
igualdade seja ausência de hierarquias. Uma república tem a igualdade como
princípio na medida em que cada um possui as mesmas vantagens para realizar
seus interesses, ou ainda, sua liberdade individual. A despeito da classe
social, todos podem ter as mesmas esperanças. A busca da felicidade particular
leva, do ponto de vista político, à felicidade geral. O fato de haver
hierarquias não é tão grave, pois há colaboração entre os “desiguais”.
Rousseau não acreditava que o império das leis
era o bastante para que se instaurasse a igualdade. Para ele, a lei dos homens
pode ser um instrumento de dominação por parte de governantes corruptos: “Tal
foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que deram novos entraves
ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural,
fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma
usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí
por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à
miséria”.
Como se vê, o quadro ideológico na França
pré-revolucionária era bastante complexo. E talvez fosse de fato necessário que
a revolta dos pobres infelizes eclodisse com violência para mudar o sentido das
palavras liberdade e igualdade. E, com elas, a própria história.
__________
* Este texto foi originalmente escrito por Thomaz
Kawauche e foi publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional no dia 01 de maio de 2014. Thomaz Kawauche é
professor da Universidade Federal de Sergipe e autor de Religião
e política em Rousseau: o conceito de religião civil (Humanitas,
2013).
Saiba
mais – Bibliografia
CASSIRER,
Ernst. A filosofia do Iluminismo.
Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques
Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo: Barcarolla,
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NASCIMENTO, Milton Meira do & NASCIMENTO,
Maria das Graças de Souza. Iluminismo: a revolução das Luzes.
São Paulo: Ática, 2002.
SALINAS FORTES, Luiz Roberto. O
Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1981.
SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração
e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês.
São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
TODOROV, Tzvetan. O
espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008.