*ATENÇÃO: Este texto foi escrito por Voltaire Schilling, tendo sido originalmente publicado no portal Terra, no dia 11 de julho de 2013. Para ler a publicação original, clique aqui.
As
massas e a história
Descontando-se
os inúmeros e praticamente incontáveis levantes de massas que ocorreram na
história da humanidade, sob o ponto de vista da época contemporânea, pode-se
fixar sua erupção na política a partir de dois eventos muito próximos. Um
deles, a Boston Tea Party (A Festa do
Chá em Boston, que ocorreu em 1773), um tanto antes da eclosão da Revolução
Americana (1776-1783); o outro, a Queda da Bastilha, de 14 de julho de 1789,
foi responsável pelo desabamento de uma monarquia que já existia há mais de 13
séculos na França.
Ambos
os acontecimentos são marcos da espetacular ação das massas revolucionárias e
da entrada delas definitivamente no universo da política, do qual por séculos
estiveram ausentes. Esta, ao longo dos tempos, tinha sido monopolizada por
aristocratas, fidalgos e plutocratas em geral, personagens das elites do seu
tempo que definiam os destinos dos povos sem fazer-lhes consulta sequer.
Desta
feita, era o homem comum, uma multidão de anônimos, quem arrombava as portas
daquele Olimpo, obrigando-o a ouvir e a atender suas demandas. O filósofo
Hegel, em carta a um amigo, registrou esta nova força que punha o mundo em
andamento, afirmando:
Esta
erupção das massas generalizou-se ainda mais por ocasião da Revolução de 1848 -
a "Primavera dos povos" -, movimento extraordinário que fez tremer
quase que todas as capitais e cidades mais importantes da Europa, com reflexos
inclusive na América Latina.
Para
Elias Canetti, autor de um livro clássico sobre o assunto, Masse und Macht (Massa
e Poder, 1960), esta excitação e presença das multidões nas ruas
protestando ou insurgindo-se resultou da libertação do controle que a religião
exercia sobre elas até a eclosão da Revolução Francesa de 1789. Desde então
foram incontáveis os "estouros" que ocorreram em várias partes do
mundo e que, tudo indica, não mais cessarão.
Marx exalta
as massas
Karl
Marx foi o primeiro filósofo moderno a captar as potencialidades
transformadoras da multidão em marcha. Percebeu que a elas, e somente a elas, e
não aos heróis das classes tradicionais, cabia "mudar o mundo",
conduzindo-o para uma etapa superior da história da humanidade. Propôs, então,
uma aliança entre os pensantes, os filósofos, os intelectuais, com a maioria
sofredora, o proletariado moderno. Afinal, eram "as massas quem fazem a
história", assegurou.
Este
entusiasmo arrefeceu um tanto, não do lado de Marx e de seu companheiro Engels,
mas de larga parte da opinião pública em geral quando dos dramáticos episódios
provocados pela Comuna de Paris, ocorridos em março de 1871. Naquela
oportunidade, milhares de trabalhadores da capital da França, homens, mulheres
e crianças, levantaram-se em armas contra o governo de Versalhes que fizera
concessões humilhantes aos alemães vitoriosos na Guerra Franco-Prussiana
(1870).
A
capital francesa ficou parcialmente destruída, com os prédios e monumentos
incendiados ou postos abaixo. Para Marx, a Comuna, ainda que vencida e
esmagada, representou, pela primeira vez na história, ainda que em esboço, o
que certamente viria a ser um governo do proletariado.
Em
Paris, a Massa tornara-se Poder mesmo que fora por apenas 72 dias. Ela
"tomara o céu de assalto", segundo ele.
O
sonho, ainda que inesperado para a maioria dos seguidores de Marx,
paradoxalmente se fez realizado não na desenvolvida e civilizada Europa
Ocidental, como ele previra, mas na bárbara Rússia dos czares autocratas e dos
mujiques miseráveis. Lenin, líder bolchevique, assegurou que, a partir de 25 de
outubro de 1917, as massas conduzidas por seu partido estavam definitivamente
no poder.
São
Petersburgo e Moscou transformaram-se em palcos de enormes manifestações,
marchas se sucediam, turbilhões humanos varriam os veneráveis logradouros tanto
da capital da Rússia asiática como da bela cidade de Pedro. Vendo aquele
espetáculo, com milhares de pessoas gritando slogans ou simplesmente andando, o
linguista Mikhail Bakhtin desenvolveu na década de 1920 o conceito de
carnavalização e polifonia da obra literária. Diversas vozes nela se fazem
presentes como se fora nos ruidosos tempos das feiras medievais.
A
origem socioeconômica das massas
A
presença das massas, das extraordinárias multidões humanas, é um fenômeno mais
ou menos recente na história. Anteriormente à Revolução Industrial, a população
era majoritariamente rural. Encontrava-se espalhada pelo campo, vivendo em
pequenas aldeias ou vilarejos isolados, com escasso número de habitantes. Não
tinha como haver significativas concentrações como as que começaram a emergir
nos conglomerados urbanos da Europa Ocidental entre 1750 e 1850. A chave para
se entender a impactante presença delas, das multidões, tem como origem
tecnológica a máquina a vapor, surgida em 1765.
O
invento de James Watt teve como efeito direto a possibilidade de se instalar
fábricas nos cinturões das cidades, liberando-as da necessidade de serem
montadas à beira de rios ou riachos, muitos deles distantes do mercado
consumidor. Com os engenhos veio a mão-de-obra. Milhares de operários começaram
a se concentrar ao redor delas, tornando as fábricas o centro da sua vida
econômica e social.
Na
esteira delas, ampliou-se o setor de prestação de serviços, o comércio com suas
lojas, os armazéns, as galerias, o setor financeiro com sua rede de bancos, o
lazer com seus cafés, restaurantes, teatros etc.
Londres,
por exemplo, capital do Reino Unido, quase duplicou a população em apenas um
século: eram 527 mil habitantes que saltaram para 1.096.784 quando do primeiro
censo oficial em 1801. Não sendo muito diferente, ainda em tempo diverso, do
que ocorreu em Nova York, Paris, Berlim, Milão...
Agigantaram-se
os centros industrializados no Ocidente igualmente pelo efeito da imigração
interna. Milhares de camponeses, de lavradores e de gente do campo em geral,
aproveitando-se da dissolução da Ordem Feudal, abandonaram seus sítios natais
para tentar a vida nas metrópoles. A soma do crescimento natural com a chegada
das levas de mão-de-obra do interior é que possibilitou a proliferação das
megaconcentrações urbanas poucas vezes vistas anteriormente na história.
O
desconforto com as massas
Para
os antigos citadinos causava estranheza e repulsa a repentina mudança que o
crescimento econômico e populacional trouxe. Do dia para noite, em Londres,
Paris, Berlim, Bruxelas, Milão, Manchester ou Liverpool, os cidadãos tiveram
que passar a conviver com estranhos que ninguém sabia de onde vieram.
Desconheciam modos urbanos, em geral eram rudes e incivilizados, agrupavam-se
nos arrabaldes em meio à sujeira e à doença em casebres medonhos e fétidos, sem
higiene alguma, e pareciam não se incomodar em conviver com esgotos ao ar
livre. Manifestavam dificuldades de adaptação a uma cidade erguida com pedras e
não com troncos e palha como o local de onde vieram.
Quem
por primeiro usou o termo "classes perigosas" foi H. A. Frégier,
chefe de polícia francês no livro Des
classes dangereuses de la population dans les grandes villes et des moyens de
lês rendre meilleures (1840), para definir setores sociais
propensos à criminalidade. O medo passou a ser constante para os
habitantes das classes média e alta da cidade. Assaltos e roubos tornaram-se
habituais. O crime vicejou como se fora um envenenamento da civilidade. A
superpopulação em determinados bairros da periferia acoitava e irradiava ondas
pestíferas que enchiam os demais de pavor. Surgiam as classes perigosas (ver
Louis Chevalier: Les classes
labouriesues et les classes dangereuxes ).
O
gênio contra a massa
Coube
ao escritor e ensaísta escocês Thomas Carlyle, fortemente influenciado pelo
romantismo alemão, com sua Teoria do Grande Homem exposta no livro Heroes, Hero-worship, and the Heroic in
History (Sobre Heróis: O heroísmo e a veneração do herói na História,
1841), tratar de contrapor a figura do herói à presença ascendente das massas.
Para
ele, o homem comum, a célula da massa, de nada valia a não ser como peão ou
degrau para assegurar a projeção do herói e respaldar sua realização. Este é
quem fazia a História. A consequência política disto foi sua condenação à
democracia, "império do vulgar" na terra, e a consequente apologia da
elite.
Vários
outros escritores alemães que o antecederam já haviam manifestado sua ojeriza à
presença da massa e do ser anônimo que proliferava naquela época, enaltecendo
ao revés o Ser Excepcional. Nietzsche, após ter ficado profundamente chocado
com os eventos trágicos da Comuna de Paris, foi quem melhor revelou este pavor
à multidão, apostando no surgimento futuro de um übermensch, o
Super-Homem (Assim falou Zaratustra,
1888). O fenômeno extraordinário que, desprezando as normas de conduta que
regiam a maioria, conduziria o destino da humanidade no futuro (Além do Bem e do Mal). O
pensamento contra-revolucionário e elitista dele forneceu os argumentos para
uma formidável literatura anti-massa que surgiu na transição do século 19 para
o 20.
O
irracionalismo da massa
Coube
ao sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, por meio do seu famoso ensaio La psychologie des foules (Psicologia
das Multidões, de 1895), demonizar as massas. Para ele, contemporâneo da
Comuna de Paris de 1871, os imensos ajuntamentos humanos que se decidiam a
marchar e a protestar nada mais eram senão que o irracionalismo posto em ação.
Mesmo quando se mobilizavam por uma causa patriótica ou altruísta nada traziam
de bom, a não ser a depredação e a desordem. Quando não a subversão social.
E
isto, entre outras causas, se devia a metamorfose que ocorre com o indivíduo
que adere à multidão contestadora. De alguém tímido, acanhado, normalmente
respeitador das regras, ele, imerso em meio aquele mar humano que seguia pela
avenida a fora que o tornava um anônimo, libertava-se facilmente das convenções
e das noções de civilidade que recebera. Simplesmente sucumbe ao número, à
"alma da multidão".
O
criminalista e penalista italiano Scipio Sighele, discípulo de Cesare Lombroso,
retomou o tema e o ampliou no seu ensaio La folla delinquente (As classes criminosas,
1891). Não tinha contemplação para com as multidões, qualquer ajuntamento além
do razoável tendia inevitavelmente ao comportamento criminoso. Logo nos
deparamos com sua vociferação, destravado, a fúria vai tomando conta dele e não
tarda para que junte pedras pelo chão para lançá-las contra as vitrines ou
contra as forças policiais. O manso vira fera. A massa, aceleradamente
excitada, facilmente regride ao comportamento de uma manada, todos agindo do
mesmo modo instintivo sem o amparo de qualquer raciocínio, e o indivíduo, como
que um possesso, retorna ao estado da natureza hobbesiana ("o lobo do
homem é o outro homem").
Massa
e Revolução
A
surpreendente Revolução Russa de janeiro de 1905 abriu intenso debate em meio
ao movimento socialista europeu, particularmente entre os teóricos
social-democratas alemães (reformistas ou revolucionários) e os socialistas
russos que participaram ativamente dos eventos que varreram o Império do Czar
durante aquele ano. Perdida a Guerra russo-japonesa (1904), o governo de
Nicolau II, logo em seguida ao massacre do Domingo Sangrento do dia 9 de
janeiro (centenas de manifestantes foram fuzilados pela Guarda Cossaca em
frente ao palácio de Inverno do Czar, em São Petersburgo), se viu frente a uma
violenta contestação.
Não
houve bairro proletário da Rússia, pelo menos nos grandes centros urbanos, que
não tenha saído em peso às ruas para demonstrar sua raiva. Greves espontâneas
eclodiram por todos os lados. As queixas pela inépcia militar logo se
transferiram para uma generalizada confrontação contra o regime czarista como
um todo. Tornou-se o maior levante de massas da Europa de então, muitas vezes
superior à Comuna de Paris de 1871.
Rosa
Luxemburgo, a famosa social-democrata de esquerda, judia polonesa que militava
na Alemanha, exultou com o "espontaneismo" das classes trabalhadoras
russas. Vislumbrou naquelas ações o futuro da Revolução Socialista. Concluiu
que era delas de onde partiria a iniciativa da derrubada da ordem
aristocrática/burguesa e não das direções acomodadas dos partidos socialistas
europeus, um tanto paralisados pelos cuidados burocráticos e pela vida
rotineira.
Vladmir
Lenin chegou a outra conclusão. De nada serviam aquelas explosões espontâneas
se não houvesse uma organização disciplinada e hierarquizada que desse um
sentido àquilo, que conduzisse aquela enorme energia despertada pela multidão
em fúria e disposta a tudo para tomar o poder pela força.
Anos
mais tarde, Trotsky, que aderira a Lenin, explicou no seu livro História da Revolução Russa – vol. I,
detalhadamente a concepção leninista por meio da metáfora "do vapor e do
êmulo". A massa em ebulição gerava uma enorme energia, mas que se não
houvesse um êmulo para dirigi-la, toda a pressão gerada em pouco tempo se
esvaía. O espontaneismo é fantástico, mas em nada redunda de positivo se não
for orientado para um determinado fim (no caso, tomar de assalto o poder). Como
os bolcheviques terminaram fazendo em outubro de 1917, na Segunda Revolução.
A
massa contra-revolucionária
Certamente
que um dos mais desconcertantes fenômenos políticos contemporâneos foi a plena
adesão das massas aos movimentos nazi-fascistas que surgiram a partir do final
da Primeira Guerra Mundial. Até então as aparições das multidões nas ruas em
protesto sempre eram tidas como uma ameaça vinda da esquerda, dos que
empunhavam as bandeiras vermelhas ou negras da revolução comunista ou
anarquista. Eis que, acaudilhadas por Mussolini na Itália e por Hitler na
Alemanha e por epígonos deles em outras partes do mundo, as massas postaram-se
em marcha a serviço da contra-revolução. Abrigaram-se sob as bandeiras da
antidemocracia e do anticomunismo para a mais total perplexidade dos teóricos
da esquerda que até hoje jamais conseguiram elucidar esse mistério.
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