Sobre o "Blog do Super Rodrigão"

*** O "Blog do Super Rodrigão" foi criado e editado por Rodrigo Francisco Dias quando de sua passagem como professor de História da Escola Estadual Messias Pedreiro (Uberlândia-MG). O Blog esteve ativo entre os anos de 2013 e 2018, mas as suas atividades foram encerradas no dia 27/08/2018, após o professor Rodrigo deixar a E. E. Messias Pedreiro. ***

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Nem tão livres, nem tão iguais*

“Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. O Artigo Primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão cairia bem em qualquer discurso da classe política atual. Mas foi escrito há mais de dois séculos pelos revolucionários franceses de 1789. E, naquela época, os conceitos de liberdade e igualdade não eram compreendidos da mesma forma que hoje.

Muito antes do Liberté, Egalité, Fraternité – um lema a serviço da retórica política do momento – os filósofos iluministas se dedicavam a complexas discussões para dar novos sentidos à humanidade em suas relações sociais. Em seu monumental tratado Do espírito das leis (1748), o Barão de Montesquieu (1689-1755) explica que, numa sociedade regida por leis, ser livre não significa fazer tudo o que poderíamos desejar. A liberdade “só pode consistir em fazer o que se deve querer” e em “nunca ser constrangido a fazer o que não se deve querer”. Ou seja, ser “livre” diz respeito não apenas à vontade, mas também ao dever. O arbítrio – isto é, a decisão sobre o que deve ser feito – jamais se manifesta fora da alçada do direito. Em sua definição lapidar: “A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.

É diferente do que pensava Aristóteles (384-322 a.C.) ao tratar da liberdade na Ética a Nicômaco: uma capacidade encontrada na alma do indivíduo. Na França do Iluminismo, o que está em questão é o estatuto político e social do homem, cuja existência depende das relações estabelecidas com os outros homens. Ser livre, nesse sentido, é ser livre relativamente aos outros, de acordo com as leis da sociedade. Ideia que permanece na sabedoria popular: “Minha liberdade termina onde começa a do outro”. Eis uma noção elementar de justiça.

Em termos históricos, a referência remonta aos primórdios da Grécia. No século V a.C., havia a distinção entre homens livres e escravos, e a divisão social da pólis determinava que somente os livres poderiam decidir acerca das leis justas. No século XVIII francês, a transição do Antigo Regime para a Primeira República foi pautada por uma releitura dessa virtude cívica dos antigos.

“A liberdade reside no poder que um ser inteligente possui para fazer o que quer, em conformidade com sua própria determinação”, afirma o verbete “Liberdade” da Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (o volume da letra “L” foi publicado em 1765). A sutileza da definição está nas palavras finais: a ação do ser livre está submetida a uma regra, mesmo que esta seja a sua própria determinação. Condição que parece nos remeter ao livre-arbítrio dos cristãos (uma autodeterminação incondicional), mas tal leitura seria uma simplificação do problema. Até porque os filósofos iluministas criticavam o conceito de livre-arbítrio justamente pelo absurdo da escolha feita sem qualquer condição prévia. Seria um efeito sem causa.

Este foi o motivo pelo qual tantos pensadores preferiram adotar a perspectiva do chamado “direito natural”, defendida por teóricos desde Cícero (106-43 a.C.) na Roma antiga até Locke (1632-1704) na modernidade. Para eles, a sociedade deve ser determinada não apenas pelas leis civis (feitas pelos homens), mas também pela “lei natural”: as noções de certo e errado que já estariam inscritas na natureza antes mesmo do surgimento das sociedades. Por causa das leis naturais, na época, uma afirmação como “o homem nasce e permanece livre” não era tão incondicional como a entendemos atualmente.

Se o conceito de liberdade não exclui o de necessidade, quais leis – civis ou naturais – determinam as escolhas dos agentes livres? Para ilustrar esta questão, Voltaire, no Dicionário filosófico (1764), apresenta um curioso diálogo no verbete “Liberdade”:

“A – Uma bateria de canhões atira junto às nossas orelhas; sois livre de a ouvir ou não ouvir?

B – Sem dúvida que não posso deixar de a ouvir.

A – Desejais que esse canhão arranque vossa cabeça e a da vossa mulher e do vosso filho, que passeiam convosco?

B – Que proposta me fazeis? Não posso, enquanto estiver em perfeito juízo, desejar tal coisa; eis o que me é impossível.

A – Bom; vós ouvis necessariamente este canhão e necessariamente desejais não morrer, vós e a vossa família, de um tiro de canhão durante o passeio; não tendes o poder de não ouvir nem o poder de querer permanecer aqui.

B – É evidente.”

A conclusão do personagem A é também evidente: “Em que consiste pois a vossa liberdade”, explica para B, “senão no poder que a vossa individualidade exerceu ao fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade?”.

Para o filósofo materialista Claude-Adrien Helvétius (1715-1771), o conceito de liberdade era baseado na crença iluminista do progresso da razão. Na obra Do espírito (1755), Helvétius expõe que, muito embora o homem seja uma máquina movida pelo interesse calcado em necessidades físicas (busca do prazer e fuga da dor), ainda assim poderemos falar em virtude se definirmos a liberdade como um interesse bem compreendido: um objeto escolhido pela razão e não apenas por impulso ou instinto. Decorre daí a sua máxima: “Livre não passa de um sinônimo de esclarecido”. Dito de outra forma, o interesse pode ser educado para buscar, para além da satisfação imediata do corpo, um prazer mais duradouro, que incluiria até mesmo o bem de todos com quem nos relacionamos, chamado “felicidade”.

No fim das contas, o que se desejava era a “autonomia”: o governo de si mesmo mediante leis estabelecidas pelo bom uso da razão. Este conceito aparecia tanto nos filósofos materialistas quanto nos “espiritualistas”. Rousseau, que se considerava cristão, não admitia o princípio teológico do livre-arbítrio e afirmava que “o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade”. Nesse ponto, inspirou o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a autonomia condicionava a liberdade a uma lei moral universal: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”.

Se nem mesmo a liberdade pode ser plena, já dá para imaginar que a igualdade, para os iluministas, também era relativa. Basta saber que o artigo citado da Declaração de 1789 é uma referência clara a Montesquieu e a Rousseau. O primeiro explica que a liberdade republicana consiste num amor à condição em que todos são iguais perante a Constituição: “O amor à república, numa democracia, é o amor à democracia; o amor à democracia é o amor à igualdade”. E seu contraponto é a monarquia, regime no qual não é possível falar em igualdade, onde cada um busca a superioridade em detrimento da felicidade alheia. Na monarquia não pode haver autonomia pelo fato de a lei beneficiar mais a classe que detém o poder. Isto leva a um quadro social instável, no qual as pessoas pertencentes a condições inferiores desejam se tornar senhoras das que se encontram em condições superiores.

Nem por isso Montesquieu considera que a igualdade seja ausência de hierarquias. Uma república tem a igualdade como princípio na medida em que cada um possui as mesmas vantagens para realizar seus interesses, ou ainda, sua liberdade individual. A despeito da classe social, todos podem ter as mesmas esperanças. A busca da felicidade particular leva, do ponto de vista político, à felicidade geral. O fato de haver hierarquias não é tão grave, pois há colaboração entre os “desiguais”.

Rousseau não acreditava que o império das leis era o bastante para que se instaurasse a igualdade. Para ele, a lei dos homens pode ser um instrumento de dominação por parte de governantes corruptos: “Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”.

Como se vê, o quadro ideológico na França pré-revolucionária era bastante complexo. E talvez fosse de fato necessário que a revolta dos pobres infelizes eclodisse com violência para mudar o sentido das palavras liberdade e igualdade. E, com elas, a própria história.

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* Este texto foi originalmente escrito por Thomaz Kawauche e foi publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional no dia 01 de maio de 2014. Thomaz Kawauche é professor da Universidade Federal de Sergipe e autor de Religião e política em Rousseau: o conceito de religião civil (Humanitas, 2013).

Saiba mais Bibliografia

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.

DERATHÉ, Robert. Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo. São Paulo: Barcarolla, 2009.

NASCIMENTO, Milton Meira do & NASCIMENTO, Maria das Graças de Souza. Iluminismo: a revolução das Luzes. São Paulo: Ática, 2002.

SALINAS FORTES, Luiz Roberto. O Iluminismo e os reis filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.

TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Sugestão de livro: "O homem que amava os cachorros" (2009), de Leonardo Padura

Muitas vezes certos personagens e acontecimentos históricos são usados por escritores quando estes elaboram uma obra de ficção. E existem obras literárias que abordam a História de maneira tão intensa que elas nos ajudam efetivamente a compreender o processo histórico.

Assim, uma excelente sugestão de leitura para os interessados em livros que misturam História e Ficção é o romance O homem que amava os cachorros, de autoria do escritor cubano Leonardo Padura. O livro foi originalmente publicado em 2009 e conta a história do líder revolucionário Leon Trotski e do seu assassino, o militante espanhol Ramón Mercader.


Leonardo Padura é pós-graduado em Literatura Hispano-Americana, romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema. O homem que amava os cachorros foi traduzido para diversos idiomas (em países como Espanha, Portugal, França, Estados Unidos e Alemanha) e recebeu vários prêmios internacionais. Para elaborar o romance, Padura dedicou cinco anos de sua vida a uma rigorosa pesquisa histórica.

Assim, Padura mistura em seu livro elementos obtidos por meio de toda a pesquisa feita com elementos que ele tirou de sua própria imaginação. O resultado é uma instigante mistura de História e Ficção que nos remete a temas como a Revolução Russa, o Stalinismo soviético, a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e os desdobramentos da Revolução Cubana.

Pode-se dizer que o livro gira principalmente em torno dos impasses vivenciados pelo comunismo ao longo do século XX. Dessa maneira, Padura explora os (des)caminhos do comunismo, indo do sucesso da Revolução Russa - momento de esperança para o proletariado internacional  - aos aspectos mais sombrios do regime de Josef Stalin e a conjuntura cubana entre o final do século XX e o início do século XXI, passando também pela Guerra Civil Espanhola e pela Segunda Guerra Mundial.

Os capítulos da obra vão compondo aos poucos as trajetórias de Leon Trotski e de Ramón Mercader. A complexidade de cada um dos personagens vai sendo desvelada aos poucos por meio de uma narrativa que procura entender como morrem as utopias. Mais do que isso, Padura procura mostrar ao leitor, às vezes de maneira bastante dura, como as pessoas que possuem ideais revolucionários muitas vezes acabam sendo derrotadas por um conjunto de forças que se revela extremamente poderoso e cruel.

O isolamento político de Trotski provocado pela ação de Stalin é descrito em páginas que levam o leitor a paisagens da União Soviética, da Turquia, da França, da Noruega e do México. Já a trajetória de Ramón Mercader, um militante espanhol que acaba se tornando o assassino de Trotski, é abordada de modo que o leitor vai aos poucos sabendo como o personagem foi envolvido em uma grande rede de mentiras, espionagens e violência. Ao final do livro, tanto Trotski quanto Mercader acabam se tornando objeto de compaixão por parte do leitor. 

Em O homem que amava os cachorros, é nítida a crítica feita por Padura ao modo como os homens desvirtuam as ideologias em nome do exercício do poder político. Nas páginas do livro, o leitor encontra comentários a respeito dos crimes cometidos pelo regime de Josef Stalin, das sofríveis condições de vida da população cubana e do modo como os governos procuram manipular a memória coletiva.

Maravilhosamente bem escrito, o romance de Padura merece ser lido não apenas porque ele nos remete a episódios marcantes do século XX, mas também porque ele nos instiga a pensar nos múltiplos pontos de vista que podem ser adotados ao se contar uma história.

Vale a pena conferir!

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NOTA: Em 2015, o escritor cubano Leonardo Padura foi entrevistado no programa de TV Roda Viva. A entrevista está disponível no site YouTube: